Por Victoria Jardim, presidente do IEE
João acordou no sábado e combinou, no grupo de WhatsApp da família, de ir almoçar na casa de seus pais no domingo. Perguntou se precisava levar algo, e lhe disseram que não, pois Rodrigo, seu irmão, iria comprar. No outro dia, João já está a caminho, quando recebe uma mensagem da mãe pedindo algo que ficou faltando. Ele pede para ela mandar um áudio, pois está dirigindo. Manda uma mensagem reclamando e xingando Rodrigo, porque ele esqueceu o pão, mas passa no mercadinho do lado de casa para pegar o que faltou e vai para a casa dos pais. Depois do almoço, a família se reúne em volta da TV para assistir ao jogo. Ana, a irmã mais velha e fanática, está em viagem, mas acompanhando também. Quando o juiz expulsa um dos jogadores do time, ela manda mensagem no grupo: “Vou matar esse juiz ladrão”.
Se a liberdade de expressão não for defendida agora, voltaremos não ao Brasil de 1964, mas ao cenário distópico de 1984
Imagino que grande parte da população brasileira hoje pertença a algum grupo de WhatsApp. E quase todos devem pertencer ao grupo da própria família. O que você acha que aconteceria se quebrassem o sigilo do grupo da família de João? Pelo cenário descrito, ele levaria uma multa por dirigir falando ao celular, poderia ser indiciado por calúnia e difamação pelos xingamentos proferidos ao irmão, e Ana seria investigada por ameaçar o juiz da partida de futebol. Exagero?
Como disse Thomas Jefferson: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Guardadas as devidas proporções, e saindo do cenário hipotético para entrar no mundo real, foi exatamente isso que aconteceu com a decisão do ministro Alexandre de Moraes na última semana. A ação violou o sigilo bancário, telefônico e de outras áreas da vida privada de empresários do nosso país, sob suposta alegação de que eles estariam atentando contra a democracia.
Não se trata aqui de defender o cunho das mensagens em si, até porque, se elas forem de fato antidemocráticas, são problemáticas e, caso se tornem realidade, serão condenáveis. Trata-se de proteger a liberdade de expressão de indivíduos em seu espaço privado. Trata-se de defender o devido processo legal, que não foi seguido. Trata-se de defender a privacidade de cada brasileiro, na qual o Estado não pode interferir.
Ouso dizer que, se a liberdade de expressão não for defendida agora, voltaremos não ao Brasil de 1964, como afirmam alguns, mas ao cenário distópico de 1984 – com a polícia do pensamento vigiando a todos nós. João e sua família que se cuidem.