Não é de hoje que parte significativa da produção artística brasileira está na ficção científica. Temos lançado livros e filmes de enorme potência dentro dos limites do gênero, se é que se pode falar em limites de gênero no contexto contemporâneo (Giorgio Agamben, um dos grandes filósofos da atualidade, define o contemporâneo como aquilo que traz em si questionamentos sobre a própria condição, o que abre a perspectiva para os embaralhamentos mais diversos). Fundamental para se alcançar o alto nível da atual ficção científica brasileira foi soltar certas amarras impostas pelos cânones do gênero.
No cinema, por exemplo: o que seria uma ficção científica? Não está errado responder Blade Runner e 2001, uma Odisseia no Espaço, claro, mas não é só isso. Há ficções científicas sem naves espaciais, com baixo orçamento e imagens naturalistas. Há ficções científicas misturadas com documentário.
A base do gênero é a fantasia especulativa a partir de elementos não aceitos pela ciência, aí incluída a materialização de tempos não vividos, de espaços não habitados, enfim, do desconhecido. Como a melhor ficção científica é aquela que vislumbra no desconhecido aspectos do real, pode-se falar do preconceito contra indígenas no país abordando mitos amazônicos (caso do filme A Febre, disponível na Netflix) ou tratar da violência policial contra negros não apenas mostrando um crime, mas recorrendo à imaginação particular das vítimas com suas sequelas (caso de Branco Sai, Preto Fica, também no catálogo da Netflix).
Mas o que me trouxe a esse tema foi a entrevista que o escritor Lourenço Mutarelli me concedeu e que será publicada na seção Com a Palavra de ZH neste sábado e domingo. Na conversa, Mutarelli conta que está escrevendo uma “autobiografia surreal”, na qual abordará acontecimentos da própria vida pontuados por delírios devidamente representativos de passagens da sua trajetória. Como se vê, é embaralhamento puro: literatura memorialística com ensaio fantástico que flerta com a ficção científica.
Nem A Febre nem Branco Sai, Preto Fica podem ser definidos como ficção científica pura, embora ambos usem elementos do gênero – assim como a autobiografia de Mutarelli. Mas os três, livro e filmes, foram concebidos em um contexto em que o real, de tão fantástico, parece só encontrar representações possíveis no âmbito da fantasia.
As denúncias do racismo e do preconceito contra indígenas poderiam ser abordadas de outras formas? Sim. Mas não foram. E isso diz muito sobre as escolhas dos escritores e cineastas contemporâneos brasileiros. Diz muito sobre a arte produzida no Brasil hoje.
Afinal, voltando a Agamben, “contemporâneo é o que olha o seu tempo para nele perceber não as luzes, mas as sombras”. Para ver melhor certas sombras, nada melhor do que o brilho do delírio.