Por Tatiana Zismann
Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
A Teiniaguá dá início ao segundo volume de O Continente, primeiro tomo da trilogia O Tempo e o Vento. Trata-se do capítulo mais mórbido da obra de Erico Verissimo. Nele, é introduzida a personagem Luzia, a teiniaguá.
Luzia é uma outsider na saga da família Terra-Cambará e poucas vezes será lembrada na trilogia, ficando aprisionada, tal como a salamanca, em uma furna de mistério e tragédia. Ela se casa com Bolívar, filho de Bibiana Terra, que passa a viver também no Sobrado.
O casamento e a convivência das duas mulheres ensejam conflitos que não diminuem com o nascimento do filho Licurgo. Quando a crise se torna aguda no Sobrado, o casal parte para uma viagem a Porto Alegre, deixando Licurgo aos cuidados da avó. Nesse contexto, eclode, na Província, o surto do cólera-morbo. Surgida na Índia por volta de 1817, a doença espalhou-se por quase todo o mundo.
Erico historia o horror da peste no Rio Grande do Sul, que dizimou em torno de 10% da população de Porto Alegre na época, estimada em torno de 17 mil pessoas:
“Conheciam-se agora notícias mais detalhadas da epidemia de cólera-morbo. Tinha sido trazida do Rio por passageiros do vapor Imperatriz, que ancorara em fins de 1855 no porto do Rio Grande. A peste começara nas charqueadas de Pelotas, alastrara-se pelas localidades vizinhas e atingira Porto Alegre, onde se dizia que o número de casos fatais ia além de mil. As carroças da municipalidade andavam pelas ruas a recolher os cadáveres, que na maioria dos casos estavam de tal modo desfigurados que se tornava impossível identificá-los. Contavam-se pormenores horripilantes. Havia pessoas que eram atacadas subitamente pelo mal e caíam fulminadas nas ruas. Temia-se que muitas tivessem sido enterradas vivas, pois os médicos, os enfermeiros e os funcionários municipais estavam de tal modo cansados, tresnoitados e nervosos que nem tinham tempo para maiores verificações. Recolhiam-se os mortos às carroçadas. Abriam-se no cemitério valas comuns onde os corpos eram despejados e em seguida cobertos de terra. Havia pavor em todas as caras e em algumas pessoas a palidez e a algidez do medo eram confundidas com os sintomas da peste asiática. O Barão de Muritiba, chefe do governo provincial, estava tomando providências para evitar que o mal se alastrasse pelo resto da Província. Contratava médicos e enviava-os para vários municípios.”
Apesar dos relatos assustadores que chegavam a Santa Fé, o casal não retornou imediatamente com a eclosão da epidemia. Bibiana, alarmada, não compreendia, afinal, tratava-se de “uma peste braba, pior que o tifo e a bubônica”.
O desrespeito à quarentena, em contexto de epidemia, é o responsável por essa tragédia da família Terra-Cambará.
É no retorno do casal que chegamos ao clímax da narrativa. Bibiana, zelosa pela vida de Licurgo, não permite que Luzia veja o filho, que ficará isolado dos pais na água-furtada. O Sobrado é colocado em quarentena por Bento Amaral, chefe da municipalidade e inimigo dos Cambará. Quando o Dr. Winter, médico e amigo da família, é chamado para ver o taciturno Bolívar, consegue um relato do que se passara em Porto Alegre:
“– Logo que ficamos sabendo da peste eu quis vir embora. Ela (Luzia) ficou furiosa. Disse que não tinha feito aquela viagem cansativa só para passar um mês em Porto Alegre. Quando falei que a gente podia pegar o cólera, ela me chamou de covarde. Assim, fomos ficando. Eu andava desnorteado, desconfiava da água que bebia, das coisas que comia. Não podia dormir de noite. Sentia por todos os lados cheiro de morte, de podridão. Mas Luzia andava contente. Ficava na janela olhando as pessoas que caíam na rua. Às vezes ia pra fora pra esperar a carroça que vinha recolher os defuntos, ia olhar de perto a cara eles... Uma vez chegou a entrar numa casa onde estavam velando um morto; não conhecia ninguém mas foi direto ao caixão e tirou o lenço da cara do defunto e ficou olhando. Fazia todas essas coisas mas de noite, na cama, tremia e chorava de medo.”
Bolívar, carcomido em suas forças – a viagem revelara a ele o caráter mórbido da esposa – e desgastado com a quarentena, lança-se para fora do Sobrado e é alvejado pelos capangas que vigiavam para que se cumprisse a quarentena. Luzia, mulher psicologicamente enferma, bela, caprichosa e lúgubre, fascinada pela morte e desdenhosa de qualquer perigo, chorou a morte do marido como “uma criança a quem tivessem roubado o brinquedo predileto”. Antes de descerem o esquife, pediu para ver mais uma vez o rosto de Bolívar, e seu olhar não era de gozo mórbido, mas de uma “dor, uma profunda dor”.
O desrespeito à quarentena, em contexto de epidemia, é o responsável por essa tragédia da família Terra-Cambará.