Mais uma vez, o sertanejo fechou o ano como o gênero musical mais ouvido no país, muito à frente dos demais: oito das 10 músicas mais executadas no Brasil em 2020, tanto no Deezer quanto no Spotify, foram desse gênero. Nem o funk, música urbana mais popular das últimas décadas, nem o forró, com o fenômeno "pisadinha", muito menos o rap, que sob certo aspecto ocupa o lugar que já foi do rock, chegam perto: 80% das preferidas dos brasileiros são sertanejas.
A estética desse tipo de música é representativa do atual momento do país sob vários aspectos, além do fato de que se trata do gênero "mais rico" da nossa indústria musical: se há artistas engrandecidos por meio de uma produção caprichada para entregar o que o público deseja, hoje, são os sertanejos. Mas quero falar sobre o consumo desses artistas.
Há um equívoco generalizado segundo o qual apreciar Marília Mendonça e não Caetano Veloso, ou Beethoven, se explica por ser "questão de gosto". Trata-se de uma falácia. Gosto não existe, assim como aquilo que seria o bom ou o mau gosto. O que nos faz "gostar" de algo é uma construção subjetiva a partir dos registros que temos na nossa memória. Esse é um debate já ultrapassado na academia e entre a intelectualidade, que surpreendentemete insiste em voltar à ordem do dia (arrisco dizer que é porque há um abismo entre a intelectualidade e o público). Se prefiro ouvir Da Guedes a Teixeirinha é porque algo me leva a isso, e esse algo está associado às minhas vivências, às experiências na música e fora dela, e não a alguma entidade interna abstrata ou biológica. Daí porque posso hoje ouvir Da Guedes e, amanhã, Teixeirinha.
Rejeitar completamente um ou outro também é do jogo, desde que conhecendo o artista em questão – rejeitar sem conhecê-lo é pior do que não gostar; é obedecer de modo acrítico uma regra ditada por alguém ou alguma estrutura estabelecida sem levar em conta nossa subjetividade. Pior do que a falácia chamada "questão de gosto" é esse "fundamentalismo do gosto", uma espécie de religião que, paradoxalmente, subverte os princípios de altruísmo e valorização do outro que deveriam ser a base de qualquer doutrina religiosa.
É isso o que me faz rejeitar o sertanejo atual. Trata-se de uma música acrítica. Reproduzida industrialmente repetindo a mesma fórmula de sempre e sem qualquer pensamento sobre a linguagem ou o contexto coletivo, como se as experiências de quem a ouve independessem da sociedade ao seu redor, do que passou, do que virá pela frente.
Porém, como o próprio gênero já demonstrou ao longo de sua história, essa automatização será superada. Desde os causos caboclos recolhidos há mais de um século, passando pelas modas de viola caipira, o sertanejo é uma glória da cultura brasileira. Sua transformação para a forma mais difundida atualmente não faz jus ao que essa música já foi. O período acrítico há de passar.