Por Márcio Chagas da Silva, ex-árbitro de futebol e comentarista esportivo
"Pensa na tua carreira, não fala nada. Liga e conversa com o presidente da federação para não te prejudicar. Tu apita campeonato Brasileiro e Copa do Brasil. Deixa pra lá esse negócio de racismo e pensa no teu bolso."
Descia a Serra, voltando da cidade de Bento Gonçalves, e um dos meus colegas de arbitragem continuava tentando me convencer a ficar quieto para não denunciar mais um caso de racismo. Quando leio textos relativizando o racismo automaticamente retorno aos fatos que aconteceram no Estádio Montanha dos Vinhedos, em 2014, quando tive o carro amassado à pontapés, cascas de bananas jogadas no capô e bananas caindo do cano de escapamento. Minha vontade era voltar no vestiário e quebrar tudo. Não fiz, pois certamente alguém diria que um negro quando reage não está preparado emocionalmente para suportar os desafios da vida, sendo violento e agindo por impulso.
Causar constrangimento e ensinar pedagogicamente como fez a escritora Djamila Ribeiro, no Manual Antirracista, é uma maneira educativa de elucidar o pensamento de quem insiste em diminuir a questão racial, levando até eles embasamento e desconstruindo algumas ideias colonialistas que há um tempo não muito distante eram aceitas como "normais".
Não podemos aceitar a violência policial como algo natural apenas acompanhando as notícias e estatísticas do genocídio da população negra. É preciso considerar a luta por igualdade racial e dos direitos humanos como legítima, necessária e apoiar as manifestações para que sejam de forma ordenada. É do conhecimento de todos que os resquícios da escravatura e dos males que os países colonizadores espalharam pelo mundo ainda causam a desigualdade racial e social.
Os resquícios da escravatura e dos males que os países colonizadores espalharam pelo mundo ainda causam a desigualdade racial e social
Um delírio acima de todos é continuar defendo o mito da democracia racial e não perceber que essa ideia atrasou demais o nosso avanço como nação. Negros que compõem 56,2% da população autodeclarada do Brasil não representam esse número nos cargos de poder e ainda estão nas posições de subalternidade mesmo após a tal "abolição". Outro mito a ser desconstruído é da meritocracia. Essa só serve para quem tem sobrenome.
Quando o movimento vidas negras importam se fortaleceu para pedir justiça, após o assassinato do norte-americano George Floyd, por um polícial branco, automaticamente um outro movimento surgiu: o todas as vidas importam. O movimento não surgiu para competir ou buscar protagonismo. Ele vem para demonstrar a necessidade da conscientização e indignação de um povo que ainda vive às margens da sociedade. Este povo é o alvo predileto da violência e humilhação policial. Inclusive, muitos jovens que não são negros se colocaram à disposição para mostrar a indignação reconhecendo seus privilégios.
Faltou colocar nesse lema o seguinte adendo: "Todas as vidas importam e as negras também!"
Depois que você terminar de ler este texto e tomar um cafezinho, um jovem negro terá sido morto no Brasil. É este o país que salta do relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens. Todo ano 23 mil e cem jovens negros, entre 15 e 29 anos são assassinados. São 63 por dia, um a cada 23 minutos.
A CPI toma por base os números do mapa da violência realizado desde 1998 pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, a partir de dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. O último Mapa é de 2014 e contabiliza os homicídios de 2012, onde cerca de 30 mil jovens, de 15 a 29 anos, são assassinados por ano no Brasil, sendo 77% negros* (soma de pretos e pardos).
O delírio do pensamento colonial remete aos saques nas lojas Apple e Nike, pois sabe que são armadilhas para os jovens que querem ser notados. O capitalismo selvagem faz com que o reconhecimento da sua existência seja a partir de algumas marcas.
Temos excelentes autores que abordam as diferentes formas de racismo e como se apresentam no cotidiano. Aqui, cito alguns: Djamila Ribeiro, Silvio Almeida, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales, Adilson Moreira, Sueli Carneiro etc.
Em um momento onde o tema representatividade está tão em evidência soltar um artigo que possa relativizar a luta antirracista demonstra desconhecimento da temática, pois o que não falta são boas obras e títulos para contribuir no conteúdo.
Vidas negras importam, também!