A entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no programa Timeline, da Rádio Gaúcha, na manhã de ontem, revelou mais motivações e convicções pelo que ele deixou de tratar do que propriamente por suas declarações. Em quase uma hora de perguntas e respostas, Lula demonstrou que segue rejeitando as sonoras evidências de que sua presidência – embora com méritos concretos em diferentes áreas – acabou tatuada pela marca de uma cleptocracia que devastou a Petrobras e ocupou o aparato estatal para tecer uma teia de desvios e fraudes.
O ex-presidente optou por se entrincheirar no passado e em uma narrativa na qual deixa entrever ranços e rancores que apenas estimulam a polarização
Calejado, Lula continua um mestre da comunicação. Tergiversa, procura ignorar questões mais agudas e circum-navega o fato de ter sido condenado em três instâncias, apesar de um sem-número de recursos contra um abundante manancial jurídico. Para se contrapor, Lula recorre à ladainha de que o então juiz Sergio Moro, os desembargadores do TRF4, os procuradores de Curitiba, a imprensa e todos aqueles que de alguma forma investigaram e expuseram as vísceras de seu governo se uniram em um complô de falsidades para incriminar a ele e a membros de seu partido. Nenhuma autocrítica, nenhum reconhecimento de crimes, a não ser repetir que quem errou deve pagar.
A entrevista de Lula à Rádio Gaúcha, uma das raras dos últimos tempos em que encontrou interlocutores que fizeram perguntas duras e diretas, integra uma série do Timeline com outros ex-presidentes, como Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer. Pode-se gostar deles ou não, mas a pluralidade de seus pensamentos, expressos em um espaço de amplo alcance, ajuda a compreender a trilha de erros e acertos que o Brasil vem palmilhando nas últimas décadas. Mais do que uma sequência de entrevistas, a série ajuda a contrapor distintas visões de mundo e a explicar por que algumas posições políticas ficaram mais parecidas com as exibidas por torcidas de futebol – muitas vezes irracionais, quase sempre apaixonadas e com frequência infensas a evidências em contrário.
Uma dessas situações foi exposta, por exemplo, quando Lula se viu comparado ao presidente Jair Bolsonaro em seus ataques à imprensa, em particular à cobertura da Rede Globo. Cada um a seu modo, ambos ameaçaram usar o cargo para controlar a imprensa. Lula, que já buscou expulsar um correspondente do The New York Times, volta a falar em "regulamentação da mídia", enquanto Bolsonaro menciona hipóteses de não renovação de concessões de televisão. Nenhum dos dois, obviamente, aceita comparações – nem seus aguerridos apoiadores, que consideram indiscutível que seus líderes tenham razão absoluta em suas posições, que se tangenciam e distanciam de acordo com o tema.
Em homenagem a sua extraordinária trajetória política, Lula, ainda que marcado pelas condenações em série, poderia ajudar a renovar o discurso e as práticas de um campo relevante da política brasileira composto pela esquerda e pela centro-esquerda. O ex-presidente, porém, optou por se entrincheirar no passado e em uma narrativa na qual deixa entrever ranços e rancores que apenas estimulam a polarização e os extremismos no cenário nacional. Em seu crepúsculo político, o ex-presidente teria credenciais para construir pontes e desarmar espíritos. Não é o que ocorre. Seus adversários no lado oposto do espectro agradecem, porque a cada estocada e radicalização os extremos se fortalecem e se aninham em torno de suas lideranças.