Muitos países, premidos pelas enormes perdas econômicas geradas pela pandemia, estão se dedicando a produzir as reestruturações necessárias para remodelar a máquina e os gastos públicos, ao mesmo tempo que combatem o coronavírus. No Brasil, conforme informação do presidente da República em entrevista à BandNews TV, ocorrerá o contrário. A reforma administrativa, que deveria ser uma prioridade, ficará para 2021.
As despesas com pessoal, sempre é bom lembrar, são o segundo maior custo da União, atrás apenas dos desembolsos com a Previdência
A desculpa da vez é exatamente a covid-19, como no último trimestre de 2019, o momento mais oportuno, os protestos no Chile foram o subterfúgio usado pelo governo para seguir empurrando com a barriga a promessa de enviar um projeto de lei sobre a matéria para o Congresso. A justificativa foi de que as manifestações poderiam se repetir no Brasil. Depois, uma nova hesitação foi atribuída à falta de clima político devido à fala desastrada do ministro Paulo Guedes, que comparou servidores a parasitas.
O objetivo central da reforma administrativa é reduzir gastos com a folha do funcionalismo, corrigindo uma série de distorções que tornam o Estado pesado e os serviços públicos prestados à população, ineficientes. Sua implementação, com estímulos à produtividade, trará modernização e maior agilidade à máquina pública. Ao mesmo tempo, abre espaços para redirecionar recursos para áreas que tragam maiores benefícios à sociedade, como o atendimento aos brasileiros mais necessitados e as urgências da saúde, como a atual luta contra o coronavírus. As despesas com pessoal, sempre é bom lembrar, são o segundo maior custo da União, atrás apenas dos desembolsos com a Previdência. No Equador, por exemplo, o governo percebeu a profundidade da crise e deu início a um ousado programa que prevê venda ou extinção de estatais e redução de salários.
O Banco Mundial estima que o PIB brasileiro terá queda de 8% em 2020. Não há quase nada a se fazer para reduzir a brutal retração da economia no exercício em curso, mas é preciso desde já preparar o país para os próximos anos, com reformas que permitam um crescimento sustentado em patamares ao menos razoáveis, o que significa bem mais do que a média anual de 1% observada após a recessão de 2015 e 2016. Outra alternativa sempre à mesa para o reequilíbrio financeiro, o aumento de impostos acabaria por sufocar ainda mais a atividade econômica, ao aprofundar a crise e minar a competitividade das empresas nacionais, jogando o país em uma espiral que demandaria mais alguns pares de anos à frente para que se retomasse o nível de atividade pré-pandemia.
Bolsonaro costuma apresentar-se como comandante de um governo liberal, mas passa ao largo de uma série de iniciativas que demonstrariam na prática essa condição. A hesitação quanto à reforma administrativa, antes mesmo da chegada do coronavírus, apenas confirma sua atuação por toda a carreira política anterior ao Planalto, como um líder sindical dos servidores fardados.
A essência da reformulação dos gastos com pessoal colide com tudo o que Bolsonaro sempre pregou. Mesmo que não exista dúvida sobre as enormes distorções salariais entre servidores e trabalhadores privados, parece que o presidente estará sempre à cata de uma desculpa para tergiversar e adiar o enfrentamento a privilégios e à indispensável reorganização dos gastos com o funcionalismo público, uma deturpação que está na raiz da crise crônica do Estado brasileiro.