Por Leo Sekine, hematologista e chefe do Serviço de Hemoterapia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA)
Ao concluir mais uma semana de comemorações alusivas ao Dia Nacional do Doador de Sangue em novembro, que foi coroado pela Caminhada dos Transplantes e Doação de Órgãos no último dia 30, ambas coordenadas pelo Hospital de Clínicas, uma reflexão é inevitável: qual o futuro da doação na sociedade moderna?
Zygmunt Bauman delineou em diversas publicações a sua visão da modernidade líquida e a individualização do ser humano. As pessoas passam gradativamente a centrar atenções em si, em sua própria sobrevivência. As relações digitais, efêmeras, supérfluas e volúveis, acumulam-se em nossos feeds de redes sociais, em detrimento dos laços verdadeiramente humanos. Laços estes que precisam ser nutridos por muito mais do que curtidas e compartilhamentos. Pontes que necessitam ser construídas com tempo, dedicação e resiliência.
Neste contexto, traz preocupação a constatação de Robert Waldinger, diretor do Harvard Study of Adult Development, que acompanhou centenas de egressos de Harvard ao longo de quase 80 anos, um dos estudos mais prolongados sobre a vida e a saúde do adulto. Dados dessa legião de indivíduos estabelecem que um dos pontos mais importantes que determinam a longevidade do ser humano é o cultivo de relacionamentos profundos, significativos e felizes.
Será nosso futuro lidar com um ser humano, egocêntrico e alheio às necessidades do outro, num contexto que depende unicamente de seu altruísmo e desprendimento? No fechamento desta última semana, dedicada à doação de sangue, observamos um incremento de mais de um terço no número de doações. Além disso, diversos retornos positivos e genuínos foram recebidos de entidades e personalidades diversas. E não há como deixar de citar o ato emblemático da família de Augusto Liberato, que propagou a conscientização sobre a importância da doação em âmbito internacional.
Parece-me que mesmo que haja um panorama negativo, descortinando-se à nossa frente, o ímpeto de cooperação, sentimento quase visceral que nos manteve vivos durante os primórdios de nossa evolução, ainda teima em emergir. O cultivo dos valores que regem atos de grandeza, como a empatia e a benevolência, podem transcender pelo receptor beneficiado, além de trazer mais vida àquele que o ajuda.