Por Lucas da Cunha Zamberlan, doutor em Estudos Literários e bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado/CAPES na UFSM
Era uma vez um romance destinado a permanecer contemporâneo, apesar da insistência do tempo. O livro é Lord Baccarat, do escritor Alcy Cheuiche, autor de obras-primas de voga histórica, como Sepé Tiarajú – a história dos Sete Povos das Missões, O mestiço de São Borja e, mais recentemente, O velho marinheiro – a história da vida do Almirante Tamandaré, livro que compõe a trilogia do mar, juntamente com João Cândido, o Almirante Negro e O farol da solidão.
Lord Baccarat, que será lançado em nova edição, atualizada pelo escritor, recupera um período marcante de sua produção, situada em meados dos anos 1990. Nessa época, combinando sua característica força narrativa a uma sofisticada maneira de contar histórias, Cheuiche perfilou romances memoráveis, como o premiado Nos céus de Paris – o romance da vida de Santos Dumont e A mulher do espelho, thriller psicológico sobre o início do movimento tenentista e a formação do contexto social e político que culminou na Revolução de 1930.
Lord Baccarat ocupa um lugar de destaque nesse cenário criativo, pois apresenta um conjunto de virtudes literárias que, a partir de então, passaram a integrar com maior frequência o universo ficcional do escritor. Talvez por isso, a despeito de o livro ter sido publicado, pela primeira vez, em 1992, ele mantenha um sabor de novidade que oportuniza uma experiência narrativa vertiginosa, capaz de envolver leitores de todas as idades.
Mais objetivamente, esse efeito de contemporaneidade é alcançado pelo casamento entre o corpo do romance – sua estrutura – e sua alma, ou seja, seu conteúdo. Sobre o corpo, os capítulos breves mantêm seu fôlego intenso. A linguagem cinematográfica valoriza os olhos, recupera o apelo visual notadamente marcado das produções culturais contemporâneas. E a oralidade traz o espontâneo da história contada, peça-chave de grandes clássicos como As mil e uma noites.
Esses ingredientes conciliados potencializam a vivência da leitura, explorando os limites da literatura a partir da sua aproximação com outras manifestações artísticas. Os diálogos dos irmãos Armando e Maurício se assemelham em tudo com um roteiro fílmico no qual a cidade Porto Alegre ganha uma expressão colorida, com seus bares, ruas, instituições e, claro, com seu povo. O final de cada conversa sempre deixa uma questão em aberto para ser preenchida, quem sabe, no próximo capítulo. Nesse sentido, o romance lembra o folhetim, gênero que equilibra, com maestria, o nível de suspense que busca captar decisivamente o leitor. Já para os aficionados por séries televisivas,o livro empreende as estratégias relacionais de causa e efeito que ocasionam uma espécie de binge-watching narrativo, facilitando uma maratona literária.
O envolvimento do leitor com a obra é tão notável na literatura de Alcy Cheuiche que o grande Paulo Autran, em carta ao autor, comentando justamente sobre o livro Ana Sem Terra, romance anterior a Lord Baccarat escreveu: “Li o seu livro Ana Sem Terra de uma tacada só. Comecei às 23 horas e fui em parar até 3 da manhã. É uma história empolgante e bem narrada. Parabéns!”.
Entretanto, de nada adianta o corpo sem a alma. Pois a forma do livro é animada por um enredo de aventura, no qual Armando, pai de Vavá e dono do barco Avante, busca vingança para aplacar sua sede de justiça. E pretende usar o cavalo Lord Baccarat para alcançar seu objetivo. Interessante sublinhar, neste ponto, o desenvolvimento cuidadoso dos personagens. Todos eles complexos, mas verossímeis, em suas contradições e dramas pessoais. As falhas de Armando são expostas, apesar de sua condição de protagonista, na mesma proporção que é permitido compreender as motivações pérfidas, mas nem sempre fáceis de explicar, de Óscar, antagonista de Armando. No centro da disputa está Vavá, a menina que cresce em conformidade com o livro, concentrado a carga sentimental mais delicada do romance.
Enquanto isso, com lógica impressionante, desenrola-se um painel histórico-político da América Latina e suas ditaduras militares, preenchendo de sentido a relação entre os acontecimentos particulares da trama e os substratos contextuais. Avulta-se, nesse retorno ao passado, a figura da uruguaia Cris, mãe de Vavá, que se destaca pela sua presença impactante que se faz sentir até mesmo na sua ausência.
Entretanto, acima de tudo, Lord Baccarat é um alerta sobre o perigo das drogas, principalmente na adolescência. Nesse aspecto, seria reconfortante que o livro sobrevivesse pela sua contribuição histórica ao tematizar um problema de saúde pública relativo à época. Infelizmente, isso não aconteceu e, também por isso, a sua leitura hoje se mostra imprescindível, principalmente no âmbito escolar.
Do mesmo modo, este livro é também uma narrativa sobre o amor e a esperança, sobre o afeto e o recomeço, elementos que resistem como condição humana em cada um de nós. Um livro necessário, portanto. Um acontecimento literário resgatado do passado diretamente para o presente . Uma obra com corpo e alma, para o bem e apesar do mal.