O ponto de chegada dos regimes autocráticos é sempre uma incógnita, mas o ponto de partida começa invariavelmente pelo cerco à imprensa independente. Nas Filipinas, Rússia, Turquia, Hungria ou Venezuela, o ritual é o mesmo. Embora em graus bem distintos de intensidade, tais regimes usam poderes de tom absolutista para intimidar jornalistas e enfraquecer economicamente os meios de comunicação para, passo a passo, assumir por via direta ou indireta o controle sobre o que se divulga em seus países. O objetivo: evitar reportagens desconfortáveis, abafar notícias críticas e calar vozes dissonantes. O resultado: fragilizar e até eliminar barreiras que se interpõem diante dos arroubos autoritários antes de avançar sobre outras instituições da democracia.
O Brasil está muito distante do rol de países cujos governos devastaram deliberadamente os meios de comunicação como estratégia de concentração de poder, mas nesta semana o presidente Jair Bolsonaro emitiu um sinal significativo de que flerta com a ideia. Logo depois de editar a
Em nenhuma circunstância, os veículos comprometidos com o interesse coletivo e com a defesa das liberdades se desviarão de suas missões de traduzir a realidade e levar ao público a pluralidade de opiniões
MP 892 – uma medida de caráter absolutista – para na prática revogar uma lei recém aprovada e sancionada por ele próprio sobre a publicação em jornais de balanços de empresas abertas, o presidente assumiu abertamente sua motivação: "No dia de ontem, retribuí parte daquilo (com) que grande parte da mídia me atacou", disse o presidente em uma cerimônia em Itapira, no interior de São Paulo.
Em abril passado, depois de quatro anos de deliberações, o Congresso havia aprovado a Lei 13.818/19, que, entre outras mudanças, moderniza a divulgação das demonstrações financeiras ao prever um período de transição para que, a partir do fim de 2021, um resumo dos balanços seja tornado público nos jornais impressos e sua íntegra nas versões digitais. Mesmo representando uma perda financeira para os veículos impressos, as mudanças estavam alinhadas aos novos tempos digitais e de exigências de maior transparência.
Em uma só canetada, com tom punitivo pelo noticiário que lhe desagrada, Bolsonaro derrubou a lei que sancionara há pouco mais de três meses e, se já não fosse o bastante, ironizou com sanha vingativa as dificuldades que alguns jornais enfrentarão. O alvo do presidente pode ter sido os grandes jornais e suas reportagens investigativas, principalmente aquelas relacionadas às conexões de seus familiares, mas acabou acertando pequenos e médios diários regionais, sobretudo no Interior, mais dependentes da chamada publicidade legal.
Na sua incompreensão sobre o papel da imprensa e do jornalismo, o presidente adota métodos tacanhos que desconhecem a história de independência dos jornais, que resistiram tanto à censura e a violências nos regimes de força quanto às tentativas de controle e intimidações em governos de esquerda. Em nenhuma circunstância, os veículos comprometidos com o interesse coletivo e com a defesa das liberdades se desviarão de suas missões de traduzir a realidade e levar ao público a pluralidade de opiniões. Não será agora, com retaliações rasteiras que ferem a impessoalidade do mandato presidencial, que a imprensa livre e independente abdicará de sua responsabilidade de buscar e divulgar a verdade.