Por Gilberto Schwartsmann, médico e presidente da 11ª Bienal do Mercosul
Ainda que ninguém se atreva a fechar questão quanto ao verdadeiro sentido da expressão que abre o Sétimo Canto do Inferno de Dante, na Divina Comédia, parece a mim simples evocação do demônio.
É Plutão, deus dos mortos e das profundezas, quem pronuncia no primeiro verso: Pape Satàn Aleppe! Talvez para alertar Virgílio dos riscos que Dante enfrentará ao transpor o quarto círculo do Inferno.
É lá que as almas acertam as contas das avarezas feitas em vida. Neste abrigo dos demônios, vigiado por Cérbero, cão de três cabeças e cauda de dragão, o poeta será o primeiro dos vivos a adentrar. E pelas mãos de Virgílio, cruzará os círculos do Inferno, Purgatório, para reencontrar no Paraíso a amada Beatriz. Não há melhor metáfora para o momento político em que vivemos.
Daí, eu recomendar aos meus compatriotas a coletânea de crônicas de Umberto Eco, intitulada "Pape Satàn Aleppe", uma reflexão sobre a "sociedade líquida" de nossos tempos, no termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman.
Explico. Ao contrário da modernidade "sólida", coesa e previsível do passado, a nova sociedade em que vivemos é instável e fluida, das profissões, às crenças e relacionamentos. Os países tornam-se reféns de corporações. As ideologias e partidos políticos evaporam. E as mudanças tecnológicas são rápidas e movidas pela Internet. Pessoas migram em massa e abruptamente, gerando enorme impacto no lugar onde se instalam. E rompem-se as relações indivíduo-comunidade.
Tudo tem vida curta. Até o amor se liquefaz. Se outrora nos apaixonávamos uma só vez, a tecnologia nos conectou tanto, que desconectar-se por novo amor é muito mais fácil. Neste banquete de superficialidades, possuir pensamento crítico é prerrogativa somente das aves mais raras. Pois é este mundo confuso e raso que Eco descreve em sua obra.
E que isto sirva de alerta a nós, brasileiros, que navegamos hoje por mares tão revoltos!! Pape Satàn Allepe! Alertem-se os demônios para que este país não viva retrocessos! Que não cesse a liberdade! E se respeitem as diferenças! Que a ciência não dê espaço à superstições! Que sejamos sempre justos! E um homem possa sempre respeitar a verdade de outro homem. Sem soluções messiânicas, que jamais deram certo em lugar nenhum.