Por Fernando Schüler, doutor em Filosofia e professor do Insper
Esta é uma eleição diferente das outras. É uma eleição pautada pela guerra cultural. Em 2014, havia visões político-econômicas em disputa. Mas não havia uma fratura cultural.
A presença de Bolsonaro muda o eixo do debate. Ele mesmo é o produto de uma mutação na democracia, que não ocorre apenas no Brasil. Temas morais e uma vaga retórica antissistema ganharam espaço na arena pública. A internet deu poder aos indivíduos e subitamente fez envelhecer as tradicionais instituições de representação da democracia liberal.
A ascensão do populismo é um sintoma disso tudo. Fenômeno feito de personagens tão diferentes como Viktor Orban, na Hungria, Marine Le Pen, na França, ou Donald Trump. Diferentes mas com um DNA em comum.
Bolsonaro é uma variante brasileira do fenômeno. Ele não dispõe de um partido; não formula uma grande narrativa sobre o país. Seu nacionalismo parece saído de velhos livros de moral e cívica. Sua visão de mundo parece se resumir a quatro ou cinco frases de efeito sobre temas culturalmente sensíveis.
Mas a retórica antissistema e a pauta moral estão lá. Ele deu expressão política a um conservadorismo de costumes latente na sociedade brasileira. Um enorme contingente de pessoas que nunca teve, desde a redemocratização, um porta-voz relevante. Agora tem.
Vêm daí a guerra cultural e a polarização. Sua razão não é Bolsonaro. Ele é o sintoma, e está longe de ser o único. A razão é a explosão de um tipo de debate que vai muito além dos limites possíveis da política. Seus temas vão do aborto, armas, sexualização da infância, "ideologia de gênero", à retórica difusa contra o politicamente correto.
Temas que opõem um tipo novo de conservadorismo popular a um progressismo ancorado na defesa de direitos, mas que não raro se torna ele mesmo moralista e intolerante.
E um tipo de debate feito à moda redes sociais, universo tribalizado, de baixa empatia, cujo incentivo é para a retórica de combate, não para escutar o que o outro lado tem a dizer.
Soluções para isto? Talvez um tênue caminho.
Os democratas precisam aceitar que há um novo ator no jogo, que representa uma parcela importante da sociedade. Suas posições surgem extremas e algo grotescas, mas o metabolismo próprio da democracia irá tratar de aparar as arestas. Não foi isto que aconteceu com a esquerda? Steven Levitsky observou que uma das normas não escritas da democracia é "a aceitação da legitimidade do outro, por mais que possamos desgostar dele". Difícil isso. Mesmo para Levitsky, que logo após nos convoca à guerra contra o grande inimigo.
É como o sujeito que abomina a radicalização, acha que temos que sair dessa "polarização inútil", mas não abre mão de chamar o oponente de fascista, nazista, coisa ruim. É sedutor fazer isto. Dá até pra bancar o herói da turma, na internet. Mas no fim todos perdem, porque é exatamente esta a lógica da guerra política.
Vai aí o novo paradoxo da democracia brasileira: nossos melhores democratas se tornaram, sem perceber, caçadores de bruxas.
Teremos que aprender muita coisa de novo, trinta anos depois.