Por Carla Tellini, founder e CEO do Grupo Press - Gastronomia e Diversão, e criadora do Bah, o primeiro restaurante brasileiro especializado na cozinha gaúcha revisitada
Em semana de Acampamento Farroupilha, o cheiro de churrasco, feito a lenha, misturado ao ar ainda gelado do final do inverno, perfuma a cidade toda e desperta uma das minhas primeiras memórias.
O lugar se chamava Fazenda das Quatro Meninas (éramos nós, o quarteto de irmãs), no interior de Encruzilhada do Sul, na bela Serra do Sudeste. Eu lá, com os meus mínimos cinco anos, debaixo daquele umbu centenário, sentada no alto de uma de suas enormes raízes, assistindo ao início do meu primeiro churrasco de vala.
A ovelha já tinha sido carneada de véspera. Aquele pelego estaqueado, secando ao sol invernal –por certo que iria pro lombo do meu petiço. A vala já estava aberta (gigante ao olhar daquela menininha). Nas bordas, taquaras encaixadas em xis, e, de ponta a outra, um "taquarão" enorme atravessado. A lenha de maricá queimava pra fazer brasa, enquanto o capataz e os peões apontavam várias taquaras menores, que virariam o espeto para a carne.
A cachorrada em volta, o chimarrão correndo de mão em mão. Eu, ali, no meu umbu-camarote, ávida por olhar cada detalhe. Foi então que, de repente, meu pai chega com um espeto cheio de pedacinhos de ovelha e me diz: "Este é o teu churrasco. Tu que vais assar. Vem nesse cantinho da vala, apoia ele aqui perto do fogo e não descuida pra não queimar nem passar". Meu coração disparou!
Passados alguns minutos, o pai passou com uma caneca de alumínio em uma das mãos e uma palha de milho na outra. Imediatamente, começou a "benzer" o churrasco. Hã? Era a salmoura, o melhor jeito de salgar a ovelha sem secar, segundo seus ensinamentos. Ok, "benzi" o meu espetinho também, com muito cuidado e seriedade.
Começava ali a minha primeira aula da cozinha gaúcha genuína.
Divido essa memória afetiva, que faz parte, também, do imaginário coletivo gaúcho, porque há horas percebo uma invasão de grelhas, parrillas, defumações, molho chimichurri, molho barbecue, varais sem roupas e cheios de legumes pendurados assando sobre o fogo. Sem contar com outras tantas parafernálias, muitas delas lindas e com resultado delicioso, sem dúvida, outras nem tanto. Mas o que me preocupa nessa mistura de assado argentino e barbecue do Mississippi, com um toque de Francis Mallmann, é que ela tem sido apresentada como sendo o nosso churrasco – aquela comida tão antiga e tradicional da nossa terra, desde os primórdios dos nossos ancestrais indígenas e que permanece na memória intacta daquela menina de cinco anos.
É fácil associar a explosão de "fogos" e "ferros" pelo país às belas imagens patagônicas dos livros e documentários do genial Mallmann. Ou aos campeonatos de "ogros" americanos, para ver quem defuma melhor uma costela de porco, exibidos nos canais por assinatura.
Só que o churrasco faz parte da cultura do Rio Grande do Sul, de uma história que merece ser respeitada na sua essência, e não pode ser confundido com tendência ou modismo.
Então, que tal dar o nome certo aos bois, às ovelhas ou aos porcos? O assado é feito na parrilla, o barbecue é defumado e o churrasco, o nosso churrasco gaúcho, é de espeto. Ah, e, se a salga for com salmoura, melhor!