Em janeiro deste ano, morreu Naomi Parker Fraley, pioneira entre as operárias das fábricas e dos estaleiros norte-americanos durante a II Guerra. Sua foto inspirou um cartaz que, resgatado posteriormente pelo movimento feminista, tornou-a uma personagem: Rosie a Rebitadeira. Todos conhecemos a imagem, o desenho de uma mulher mostrando a força do seu muque e um olhar desafiador. O texto diz “Nós podemos”, referindo-se às mulheres. Ele lembrava que podemos participar dos esforços de guerra, substituindo os homens convocados.
Tradicionalmente, eles eram chamados para as armas, nós, para a retaguarda. Fomos enfermeiras, um papel herdeiro do materno, mas também couberam-nos a gestão, a produção e até, quem diria, a luta, com muito maior frequência do que se admite. Sempre que as tarefas masculinas caíram no colo das nada frágeis mulheres, constituíram-se memórias cortadas da edição final dos eventos históricos. Pela misoginia das versões oficiais, de fato, mas também pelo incômodo viés narrativo feminino.
“A mulher é o sujeito imprevisto”, escreveu Elena Ferrante. Mesmo que inesperados, nossos escritos têm sido cada vez mais lidos, #leiamulheres é uma marca que lembra de prestar atenção na voz literária feminina. Porém, a inconveniência, para a história oficial, desse modo de ver e narrar fica muito clara em um livro que considero um divisor de águas.
A bieolorrussa Svetlana Aleksiévitch, Prêmio Nobel de Literatura, fez um trabalho na fronteira do jornalismo com a literatura que tornou-se o livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher. Ela passou anos escutando as sobreviventes de um contingente de milhões de soldadas soviéticas, que enfrentaram combates sangrentos ombro a ombro com os homens, dividindo missões e tarefas sem diferenças de gênero. Apesar disso, elas tinham outra guerra para contar, só não estavam certas de ter a coragem de fazê-lo.
Para as mulheres, reis e rainhas estão sempre nus. É um olhar inevitável, oriundo de um ponto de vista, resultante de gerações consagradas à intimidade e relegadas aos bastidores. Fomos treinadas para disfarçar essas nudezes e ocultar qualquer contradição com o papel de mãe e cuidadora.
Svetlana conta o episódio de uma jovem que precisou ocultar-se dentro da água.
A vida dela e a de seu pelotão, naquele momento, dependiam do silêncio absoluto. Ela recentemente dera à luz um bebê, que chorava, mesmo que ela o amamentasse. Os colegas a assistiram submergir sua amada criatura, até que a morte a calasse, para garantir a sobrevivência do grupo. Essa é uma das mais dolorosas histórias que já li a respeito desse século infame.
Nem tudo em uma fêmea é fertilidade e amor. A imagem de Naomi foi retomada para lembrar das tantas coisas que podemos. Inclusive narrar, do nosso jeito, nossas histórias, mas só para quem tiver coragem de escutar.