Domingo de arnaval, 11h. A cena não poderia ser mais imprópria: um rapaz e seu amigo fazem compras para o churrasco do feriado e bebem cerveja dentro do supermercado, estocando no carrinho mais 50 longnecks. Um deles está acompanhado da esposa e do filho de seis anos. É simpático e atencioso com ambos. Insiste que o filho compre um brinquedo que lhe agrade, é carinhoso e faz brincadeiras enquanto consome sua cerveja. O filho sorri para os pais e todos estão felizes.
Em outras culturas, nada disso seria permitido e não seria atípico um cidadão perguntar se esse pai iria dirigir ou não
FLAVIO PECHANSKY
Diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas e chefe do Serviço de Psiquiatria de Adição do HCPA
Mas, em uma mão, o pai segura uma garrafa de cerveja aberta (não sei se a primeira, e provavelmente não a última), e, na outra, a chave do automóvel. Penso: "Não deveria prestar atenção nisso, pesquisar sobre beber e dirigir é meu trabalho, e estou em férias". Controlo a vontade de perguntar coisas a esse pai: "Vai dirigir agora?", "Sua esposa vai dirigir?", "Estas cervejas são para quantas pessoas?", "Pensou no exemplo para seu filho?". Por outro lado, penso: "Não irá acontecer nada, eu me preocupo demais com isso...", "Afinal, parece ser uma pessoa tão boa e agradável, não irá causar dano no trânsito". A ficha cai neste momento.
Terroristas, psicopatas e outros desviantes dirigem com a intenção de matar pessoas. Motoristas comuns não são suicidas e assassinos porque querem destruir vidas, mas porque não refletiram sobre o beber e dirigir e o exemplo que passam ao redor. Talvez tenham recebido exemplos permissivos como o do menino com seu pai no supermercado. Nossa cultura – invasiva nas opiniões extremadas em redes sociais sobre futebol, política, arte vs. não arte – é omissa em identificar que esse indivíduo simpático, atencioso e gentil poderá, sob efeito de álcool, dirigir um veículo e nos matar, matar a si próprio ou – mais terrível ainda – seu lindo filho.
Em outras culturas, nada disso seria permitido e não seria atípico um cidadão perguntar se ese pai iria dirigir ou não, pensando na segurança de terceiros. Isso é feito em bares, também, sob pena de responsabilizar o dono do estabelecimento. Estamos longe disso, e me pergunto se meu silêncio teve alguma utilidade. Eu deveria ter dito algo?