Sobre Jair Bolsonaro, tenho um constante dilema ético-jornalístico e uma anedota. Vou começar pela segunda. Em 2013, quando fui repórter na sucursal de Brasília, fizemos uma série de reportagens sobre os parlamentares recordistas de gastos na Câmara em cada rubrica da cota parlamentar.
É uma questão espinhosa, porque não há ilegalidade em deputados usarem as cotas que servem justamente para bom exercício do mandato. Mas, olhando de perto, uma consultoria pode nunca ter existido, o combustível pode ser justificado com notas frias, uma impressão superfaturada pode ser pagamento antecipado de material de campanha e assim por diante.
O recordista nacional em envio de correspondências era Bolsonaro: havia gasto R$ 263.357,94 em selos entre 2011 e 2013. Parlamentar algum gosta de falar sobre seus recordes de gastos, mas a gente tenta. Liguei para o gabinete na Câmara e ele não estava, mas o assessor me passou imediatamente o celular funcional, o pessoal e até o telefone residencial.
Salientou ainda que, se eu não encontrasse o deputado, ligasse de volta. Conversei com Bolsonaro de sua casa no Rio. Ele foi um doce e,sua explicação, plausível. Disse que o eleitorado dele é majoritariamente de militares da reserva avessos a computadores, portanto ele enviava boletins informativos por carta. Tem, segundo ele, um mailing maior que o do próprio Exército. Na entrevista, encaixou uma e outra ofensa a Dilma Rousseff, mas não dei trela. Perguntei se ele poderia me enviar alguns exemplares desses informativos. Sem problemas.
Em minutos (minutos mesmo, menos de uma hora), chegava aos meus cuidados um envelope pardo da Câmara gorducho, com dezenas de panfletos que misturavam charges pejorativas aos alvos favoritos de Bolsonaro e notícias sobre verbas destinadas via emendas para hospitais e outras instituições militares.
Mais um pouco e o próprio Bolsonaro ligou de volta para saber “o que eu havia achado do material”. Respondi que o teor dos informativos não era o foco da reportagem, mas o deputado insistia por farejar, a cada conversa com um jornalista, a oportunidade de ver publicada mais alguma barbaridade. E aqui entra o tal dilema ético-jornalístico.
Para Bolsonaro, cada microfone é um palanque. Eles vêm do mundo inteiro, e é claro que Bolsonaro recebe a todos com cortesia.
A atriz Ellen Page, filmando um documentário, perguntou a Bolsonaro se ela, como homossexual, deveria ter apanhado quando criança. Ouviu de volta que ele assoviaria para ela na rua. Ao comediante britânico Stephen Fry, o deputado declarou que não existe homofobia no Brasil e culpou, “em 90% dos casos”, os próprios gays pelas mortes. Sempre cordato, alheio ao entrevistador de cabelos arrepiados com as respostas.
Bolsonaro há muito entendeu que sua verborragia o torna cada vez mais popular. E então: o jornalista deve dar vazão a declarações sem notícia alguma, especialmente sabendo que elas serão transformadas de imediato em propaganda? Agora, eleitoral à presidência do Brasil?
Por outro lado, Bolsonaro e seus eleitores existem. Já estão na casa dos milhões. Lembro que, às vésperas da última eleição norte-americana, o site BuzzFeed fez uma transmissão ao vivo de uma vela queimando em forma de Donald Trump. O recado era que o candidato folclórico estava com as horas contadas: sumiria tão logo se encerrasse a apuração das urnas. Deu no que deu. Logo após a eleição de Trump, a imprensa ianque foi acusada justamente de ter ignorado um fenômeno maior do que se imaginava, talvez por receio de vitaminá-lo com manchetes.
Diante de tudo isso, foi com certa surpresa que vi, dias atrás, a um Bolsonaro pela primeira vez incomodado ao microfone. Conseguiu, a muito custo, transformar em manchete mais uma frase folclórica – a de que usava o seu auxílio-moradia para “comer gente” –, mas quem a proferiu não foi o parlamentar desenvolto e confortável que me ligou em 2013. Confrontado em trânsito por uma repórter da Folha de S.Paulo, que questionou o deputado municiada de indícios substanciais de mau uso de verba parlamentar e evolução suspeita de patrimônio, Bolsonaro reagiu como um político acuado clássico: irritadiço, lacônico, malcriado.
Se é cedo para avaliar o impacto junto aos eleitores, já dá para dizer que Bolsonaro acusou o golpe. E não foi um golpe baixo, mas franco e contundente. Como é uma reportagem bem apurada que flagra um candidato em contradição. E talvez esteja aí a resposta para o meu dilema. No bom jornalismo.