* Presidente da Fundação Bienal do Mercosul
Em décadas de vida universitária, nunca havia visto mais negros do que brancos em uma sala de conferências. Foi o meu primeiro pensamento ao adentrar o seminário Lugares de memória no Triângulo do Atlântico.
Como parte de sua programação cultural, a Fundação Bienal realizou há algumas semanas, na UFRGS, um encontro de intelectuais do país e do Exterior para discutir talvez o nosso maior exemplo de amnésia histórica.
Refiro-me ao ocultamento premeditado da presença do negro em nossa sociedade. Por quase 400 anos, navios negreiros cruzaram o Atlântico, trazendo pela força mais de 10 milhões de cativos da África para a América.
A escravidão foi o sustentáculo do modelo econômico mais perverso da história da humanidade. O que poucos brasileiros sabem é que, enquanto os Estados Unidos receberam 400 mil negros no período escravagista, ao Brasil chegaram 10 vezes mais.
Nenhum dos locais de chegada de negros à América supera o Cais de Valongo, no Rio de Janeiro. Um milhão e meio de escravos ali desembarcaram. Descoberto por acaso, em 2011, durante as obras do Porto Maravilha, é hoje patrimônio mundial da humanidade e testemunho da crueldade da escravidão.
Em 1991, em semelhantes circunstâncias, em Manhattan, Nova York, descobriram-se vestígios de um antigo cemitério, onde os negros enterravam seus mortos até fins do século 18. Fundou-se ali, em 2006, o African Burial Ground, lugar de memória dos negros norte-americanos.
No Cais de Valongo, contudo, não havia cemitério. Ali se descobriu uma cova enorme, onde o lixo das ruas misturava-se aos corpos de animais e de negros mortos. Vem daí o seu valor simbólico. As pedras que restam constituem um sítio de memória sensível, expressão reservada aos locais que lembram erros que não podemos repetir. Como Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki.
A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, que se iniciará a partir de abril do próximo ano, quer utilizar-se da arte contemporânea para discutir a influência da matriz africana em nossa cultura.
O tema O Triângulo do Atlântico lança luz sobre nossos elementos culturais menos visíveis. Não seremos nunca um grande país sem reconhecer a tentativa histórica indecente de ocultar a presença do negro na formação do povo brasileiro.