A decisão final sobre o ensino religioso nas escolas públicas ficará com o Supremo Tribunal Federal (STF), no qual tramita ação relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso. Dois artigos na seção "Duas Visões" demonstram a importância da votação. Um deles é o texto do Juiz de Direito em Porto Alegre, membro da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD) Roberto Arriada Lorea (leia abaixo), com a tese de quem defende o Estado laico, sob a alegação de que, entre as atribuições do Estado, não se inclui a promoção da religiosidade. O outro é o texto de Carlos Adriano Ferraz, professor, doutor - Departamento e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com as alegações de quem entende que o ensino religioso precisa fazer parte da formação de todos os estudantes.
No tempo das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), não se cogitava de liberdade para escolher ser ou não ser religioso. No seu Livro Primeiro, título II, dita-se "como são obrigados os pais, mestres, amos e senhores, a ensinar, ou fazer ensinar, a doutrina cristã, aos filhos, discípulos, criados e escravos", enquanto seu Livro Quinto, título I, reza "que se denunciem ao Santo Ofício os hereges e os suspeitos de heresia ou judaísmo". Forjou-se, assim, a maioria católica no Brasil, naturalizando-se o tratamento desigual àqueles que pensam diferente de "nós".
A memória de um Brasil confessional e intolerante deve ser preservada, para que as novas gerações sejam capazes de compreender que os valores democráticos, que garantem o respeito à crença do outro, são conquistas da laicidade e não da religião. O Estado laico não discrimina por motivos religiosos, não afirma ou nega a existência de Deus, tampouco estabelece hierarquia entre milhares de crenças professadas no Brasil, relegando essa questão à liberdade de consciência de cada cidadão. A laicidade, portanto, fomenta a diversidade religiosa inerente a uma sociedade justa, livre e solidária.
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a ONU pauta o tema da liberdade religiosa. Em 1981, aprovou a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou Convicção. Mais recentemente, em 1995, aprovou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, enfatizando que "tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro".
Nas democracias modernas, a tolerância aparece como uma necessidade política e jurídica para a vida em sociedade. Nesse contexto, o papel do Estado não é promover a religiosidade, mas assegurar tanto a liberdade de crença quanto de não crença. No Brasil, o artigo 19, I, da Constituição Federal estabelece a separação entre o Estado e as instituições religiosas, proibindo a subvenção a cultos e qualquer forma de aliança. O ensino religioso, quando desejado, pode ser facilmente obtido no seio da família e no âmbito das instituições religiosas.
Atuando na defesa do Estado laico, a Procuradoria-Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.439) requerendo ao STF que declare inconstitucional o ensino confessional proposto no acordo firmado entre o Estado brasileiro e a Santa Sé (Decreto 7.107/2010). Sustenta, acertadamente, não ser admissível que "se transforme a escola pública em espaço de catequese e proselitismo religioso, católico ou de qualquer outra confissão".
O Brasil ainda não superou sua herança religiosa de valorização da desigualdade. Nossa cultura jurídica do tipo "nós e eles" se expressa quando legitimamos tratamento desigual em razão do pertencimento religioso, racial ou étnico, de gênero, sexual, social, político e cultural. Ensinar às crianças, nas escolas públicas, que as pessoas devem ser valoradas de acordo com seu pertencimento religioso significa retroceder ao tempo das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promover a crença na desigualdade e fomentar a intolerância.
Leia outros artigos da seção