Por Celso Gutfreind, psicanalista e escritor
Hoje mandamos áudios. Sucessivamente. Em excesso. Não telefonamos. A ligação direta sem mensagem prévia chega a soar invasão. Áudios e mais áudios. Sem ligar. Ligar significa conversar. Conversar implica em ouvir. Ouvir permite ser interrompido. Seria estar entre dois ou, como diz a psicologia, é intersubjetivo.
Pode estar aí um dos traços mais terríveis de nossa cultura contemporânea
A poesia, como sempre, abordou antes o assunto. Mario Quintana, em curto e célebre poema, expressou que uma conversa consiste em dois monólogos intercalados. Bingo. Falar significa entoar o próprio monólogo e mandar áudios é a garantia de que o outro não vai nos interromper. É eu e eu. É eu comigo.
Pode estar aí a manifestação de um dos traços mais terríveis de nossa cultura contemporânea, essa pós-novas tecnologias. Ela é narcisa, ou seja, ratifica o mito de que o outro se apaga diante da minha necessidade premente. Com Narciso, ser visto e admirado. Hoje, ser ouvido e admirado. Não teria mudado muito.
A premissa (narcisa) segue igual, justo na resistência ao diferente. No áudio o outro está controlado e isso facilita tudo, em curto prazo. Permaneço no meu monólogo sem ser interrompido por nenhuma diferença que acarretaria a necessidade de eu não ser tão admirado pelo que estou dizendo.
Mas o preço é alto. Porque, desde os primórdios da nossa existência, somos forjados pelo outro e pelos canais de comunicação que a ele nos une. Não são muitos: ser olhado, ser tocado. E conversar. Toda conversa é difícil, do bebê ao velho, ao precisar ajustar as diferenças, a tal da intersubjetividade.
Toda conversa verdadeira balbucia, mas não tem outro modo de poder transformar e ser transformado. De influenciar e ser influenciado, incrementando — psicologia — a nossa subjetividade, alicerce de quem somos e do espaço que podemos ocupar nesta vida. Por isso, o filósofo Maurice Blanchot chamou a conversa de infinita. Mais fácil o monólogo. Não balbuciar como os áudios permitem. Eles oferecem a facilidade, mas também o pacto com a mesmice de um Narciso condenado a limitar-se em si mesmo.