* Promotora de Justiça
Duas mães casadas entre si. Um pai. Queriam registrar o filho no nome dos três. Famílias modernas se formam e nem sempre a lei acompanha, porém o Judiciário não pode se omitir de dar uma resposta. Peço uma audiência para entender a situação. Dizem que o pai e a mãe biológica são amigos de longa data e ele aceitou se engajar nesse projeto. A criança foi gerada por inseminação caseira. Achei melhor não perguntar detalhes. O parto foi humanitário, em casa, feito por uma doula. Argumentei que a multiparentalidade poderia trazer desconfortos à criança, pois a sociedade está atrasada em se despir de preconceitos. Afirmaram estar tranquilos, penso que talvez por conta da experiência de quem já viveu o preconceito na pele e sobreviveu e de quem sabe que o registro vai apenas refletir a realidade do filho de ter uma vida familiar fora dos padrões, mas que lhe garante segurança e amor. Talvez a certidão de nascimento seja o passaporte para que se sintam incluídos nessa sociedade nada acolhedora ao diferente.
Busquei no Tribunal de Justiça do RS algum julgado que confortasse esse caso, pois minha dúvida em chancelar aquela situação, não contemplada na legislação vigente, dissipou-se diante da manifestação de vontade e certeza daquelas pessoas de que toda forma de amor valia a pena.
E queriam a oficialização do Estado de que família não tem modelo, tem a forma que as pessoas dão. Nosso tribunal já tinha jurisprudência em caso similar, e confortou-me encontrar amparo jurídico a algo que meu coração já tinha aceitado no momento que aquele bebê entrou na sala. Com o tempo, constar duas mães ou pais na certidão não deverá causar mais surpresa do que a daqueles que só ostentam o nome da mãe, os filhos de pai desconhecido. E lá se foi o Paulinho, carregando o peso de seus três sobrenomes. São os presentes que a atuação como promotora de Justiça me dá, mas que é preciso mais do que conhecimento jurídico para fazer a diferença na vida das pessoas. Um aprendizado que me enriquece e me faz ver beleza onde muitos enxergariam apenas escuridão ou a letra fria da lei.