Uma garota desapareceu na noite de 2 de junho, em Cachoeirinha. Ela pode ter fugido, pode estar em cárcere privado ou pode estar morta. Mesmo na hipótese menos grave, sua família deve estar aflita, precisando de apoio e palavras de conforto. Mas o que nós, enquanto sociedade, oferecemos?
"20 anos, é adulta e sabe o que faz!!!!!!!! Nao é criança e nem adolescente!! É nega véia ja"
"Para desaparecer de Cachoeirinha, eu entraria até numa carroça... Que ela esteja muito bem e que só volte se quiser!"
"Deve estar com algum namoradinho."
"Uma menina linda com certeza era alguém mais velho que ela no carro..."
"Em boa coisa não estava metida"
"Foi dar a menina ue"
Esses comentários foram pinçados do post no Facebook com a notícia de que um vídeo mostra Nicolle da Silva entrando em um carro antes de desaparecer. Alguém já disse que as redes sociais fazem aflorar o pior do ser humano. Não sou tão pessimista – por meio delas, já construí amizades e conheci histórias bonitas, por exemplo. Mas as redes são muito eficientes em fisgar nossos pecados: a ira, a inveja, a soberba, a preguiça (é o que nos faz ficar rolando a tela do Facebook, né?), principalmente a vaidade. É a chance de exibir para bilhões de pessoas como somos ricos, inteligentes, viajantes, solidários, politizados, engraçadinhos... Às vezes, há um tanto de autoficção, de autoengano: ninguém consegue ser feliz o tempo inteiro. Em outras, como no caso dos comentários sobre a jovem Nicolle, somos sinceros demais.
Não vou nem entrar no debate da culpabilização da vítima, um fardo pesado e injusto que as mulheres carregam. Mais do que trair uma visão misógina, eivada de preconceitos e prejulgamentos, as manifestações revelam uma total falta de empatia para com Nicolle e seus familiares. Piadinhas numa hora dessas?
Não me espanto com o que está dito – o mundo sempre teve e sempre terá desrespeito e crueldade. O que me espanta é que está escrito. Talvez eu esteja sendo romântico. Entendo que, em uma mesa de bar, em um jogo de futebol ou em um debate político, os ânimos fiquem exaltados e a gente fale besteiras das quais, tomara, vamos nos arrepender depois. Mas escrever é um ato mais racional. Pressupõe uma mediação do sujeito consigo mesmo. O instinto passa ou deveria passar por um filtro. Dia após dia, post após post, esse filtro vem sendo corrompido pela sedução da instantaneidade, pela urgência em opinar, pela ilusão de importância – a gente realmente acha que o mundo quer saber o que pensamos sobre cada assunto? Eu realmente acho que vai fazer alguma diferença este texto? Tenho de acreditar. Pelo bem da vida em sociedade, tenho de acreditar.
* Editor de Sua Vida