Havia três mulheres entre os 48 calouros de Medicina da futura Universidade Federal de Santa Maria em 1959. Visto de hoje, o Brasil daquele tempo era um estranho planeta. A população estimada era de 64,6 milhões de habitantes, pouco mais do que as atuais populações dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro somadas. Metade dos brasileiros, assim como dos rio-grandenses, vivia no campo. O trem era o principal meio de transporte de massa entre a faixa litorânea e o Interior. Aos 96 anos, o ex-governador Borges de Medeiros, que testemunhara a proclamação da República, ainda vivia recluso na fazenda de Irapuazinho, no interior de Cachoeira do Sul.
Stefan Zweig chamou o Brasil de "país do futuro", mas no final dos anos 1950 a definição mais precisa teria sido a de "mundo de ontem", que aplicara à Europa de sua juventude. Como no universo do escritor, o que era passado continha evidentes germes de mudança. Em 1959, a população brasileira já era quase o dobro dos 36 milhões recenseados oito anos antes. Urbanização e industrialização eram acompanhadas de uma lenta mas inexorável revolução de mentalidades e costumes. As três moças de Santa Maria, pioneiras entre as mulheres de suas famílias no ingresso na universidade e na habilitação ao exercício de uma profissão, podiam parecer deslocadas. Na realidade, eram um prenúncio. Todas viveram o bastante para conviver com colegas formadas em turmas nas quais mulheres já são, há algum tempo, maioria.
Devo a minha mãe, uma daquelas jovens, a convicção muito precoce de como são vazias as noções de "profissão de mulher", "lugar de mulher" e "papel de mulher". No mais das vezes, essas ideias só têm uma utilidade: certificar que quem as invoca não se preocupou em ouvir mulheres a respeito do assunto. Ser filho de mulher trabalhadora é, para mim, fonte de profunda felicidade e permanente aprendizado. Mulheres sofrem diariamente com dupla jornada, desigualdade salarial, discriminação nas carreiras, falta de creches e outras limitações que constituem verdadeiras barreiras invisíveis ao mercado de trabalho. A última coisa de que precisam são parlapatões a lhes sermonear sobre a primazia do serviço de casa e do cuidado com filhos. Não existe sagrada escritura que reserve a ninguém o privilégio de estudar e trabalhar.
Ao presidente Michel Temer e outros com ideias sobre a mulher que já estavam fora de lugar antes de 1959, um conselho: voltem para o seu mundo de ontem. Vocês se sentirão em casa.