Quatro anos depois da maior tragédia já registrada no Rio Grande do Sul, com 242 mortes, o dia 27 de janeiro, que deveria ser dedicado exclusivamente para reverenciar a memória das vítimas e consolar a dor de familiares, amigos e sobreviventes, vai se transformando perigosamente numa data associada à impunidade. A sociedade gaúcha não pode se conformar com essa possibilidade. A mesma cultura de leniência, omissão e irresponsabilidade que levou o poder público, em diferentes instâncias, a permitir a operação de uma casa noturna de forma claramente irregular e sem a mínima fiscalização, corre o risco de se repetir agora com uma demora além da inevitável na apuração e punição dos responsáveis.
Em outros países nos quais foram registrados episódios semelhantes, as instituições reagiram rápido, buscando providências para evitar sua repetição e fazer valer a lei. No caso da boate Kiss, faltam respostas objetivas. E ainda há perspectivas particularmente cruéis, como a de que pais das vítimas, denunciados à Justiça por calúnia e difamação, venham a figurar entre os primeiros condenados.
Por maior que seja a complexidade do fato e por mais que o Judiciário brasileiro, historicamente, se veja às voltas com uma ampla possibilidade de recursos, o somatório de irresponsabilidades que marcou Santa Maria e o Estado para sempre não pode simplesmente ser ignorado. O caso Kiss é uma ferida aberta na consciência dos gaúchos. Qualquer demora além da previsível nas responsabilizações amplia ainda mais a dor de quem clama por justiça. A sociedade gaúcha não pode se conformar com essa inação do poder público, que tende, inclusive, a estimular um descaso generalizado com a segurança e integridade física da população.
O caso Kiss foi uma tragédia, mas não pode ser considerado acidente. O horror que ainda hoje martiriza os gaúchos só ocorreu em consequência de uma combinação perversa de ganância empresarial com omissão, jeitinho, desrespeito à lei e até conluio com agentes públicos. Uma demora em fazer justiça contribui para reforçar a ideia, comum ainda hoje, de que a falta de cuidados mínimos não dá em nada.
O fato registrado há exatos quatro anos mostra que sim, que ignorar a lei pode inclusive levar seres humanos à morte até mesmo em momentos de diversão, legando a dor da perda a familiares e amigos. Não é admissível que esses cidadãos, para os quais o poder público foi incapaz de garantir um mínimo de prevenção, precisem se sujeitar também à impunidade.