Algumas histórias sobre milagres da natureza. A primeira é sobre um rio do Japão que teve seu curso alterado por valas abertas pela engenharia. Depois de décadas correndo por um leito artificial, o rio retomou por conta própria o leito original. Li sobre isso há uns cinco anos, não sei onde.
O rio havia sido desviado do seu traçado para que alguma obra fosse feita, talvez uma hidrelétrica. Por um erro de engenharia, aos poucos o rio voltou a correr por onde queria correr. Havia explicações para o fenômeno, além das poéticas, mas eu deixo a história assim mesmo, sem pesquisas no Google e sem considerações lógicas.
Outro caso é sobre outro rio do Japão, e desse eu guardei a história. É o Kushiro, da ilha de Hokkaido. Quase três décadas atrás, o rio também teve seu traçado alterado e passou a percorrer uma linha reta, como fizeram em Porto Alegre com o Arroio Dilúvio.
O governo decidiu que o rio deveria voltar a ter as curvas originais. Engenheiros e máquinas foram mobilizados. Recuperaram as curvas do Kushiro, não porque isso fosse essencial para sua preservação, mas talvez porque nas curvas estivesse sua alma.
A terceira história é sobre o impasse criado há uns dois anos, no Vale do Taquari, quando as obras da barragem de Arvorezinha foram paradas porque alguém alertou: é preciso salvar o sapo-de-barriga-vermelha. A região seria o único lugar do mundo onde há o sapo-de-barriga-vermelha.
Até hoje não sei, e nem busquei saber, se a obra foi tocada depois, se o sapo foi salvo e se a hidrelétrica foi construída. Me interessa o fato lá do começo, quando uma grande obra foi parada por causa de um sapo.
Poderia contar outras histórias, mas essas me bastam. O rio que voltou ao leito normal, o outro rio que ganhou de novo as curvas originais e o sapo salvo dos entulhos de uma barragem.
Todas as histórias me comovem. Mas o caso do sapo é emblemático com o que se passa hoje no Brasil, quando choram pelos peixes mortos no Rio Doce. Porque, sempre que se fala de grandes projetos, principalmente de hidrelétricas, as vozes da racionalidade e do desenvolvimento advertem que um sapo (quase sempre é um sapo) não pode parar o progresso. Os sapos não teriam função a cumprir no mundo.
Há também um surto assustador de nascimentos de crianças com microcefalia no Nordeste. Já está quase provado que o Aedes aegypti, o mesmo mosquito da dengue, contaminou mulheres grávidas com a zika, a doença que pode ter provocado a má-formação.
O sapo-de-barriga-vermelha, o mosquito, o lagarto, o ratão - nenhum deles tem significado para tocadores de obras grandiosas e para os que, para não terem que pensar muito, seguem suas pregações. Mas a desgraça das crianças com microcérebro talvez venha um dia a ser explicada, com singeleza, pela proliferação de um mosquito que deveria ter a população controlada por um parente do sapo-de-barriga-vermelha.
E lamentamos então a destruição de Mariana e da vida do Rio Doce e do seu entorno, por mais de 800 quilômetros, porque aquilo nos emociona. O que nos assombra é o espetáculo provocado pela barragem estourada com suas imundícies. A destruição sistemática, cotidiana, das coisas e dos bichos, pelas nossas mãos, não tem o poder de nos comover.
Os que ainda riem da história do sapo-de-barriga-vermelha podem ser os mesmos que comemoraram a cumplicidade do novo Código Florestal com os devastadores de margens de rios. E são os mesmos que choram vendo na TV o fim do Rio Doce, lá bem longe de nós.
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A partir de segunda-feira, concedo férias de 10 dias aos meus leitores.