Há uma parte em nós que será sempre sedentária. Esportes e viagens nada podem contra sua estrutura, senão aumentá-la. Há uma estranha parte em nós que estará melhor quanto mais obesa se puser. No entanto, inclementes, exigimos dela que seja ao mesmo tempo rápida, contamos com sua agilidade, com seus golpes súbitos e malabarismos circenses. Sendo por definição acumulativa, com suas curvas de robustez, nossa memória, se gente, teria de ser como aquele clássico lutador gordo dos filmes de kung fu, o Sammo Hung: pesada e veloz, graciosa apesar de suas dimensões, resistente feito nenhuma outra coisa à ação do tempo.
Pedro Gonzaga: a paixão perene
As mãos das ruas mudam, mudam-se as pinturas, antigas sacadas se convertem em gélidos balcões de vidro, mas ainda lembramos dos caminhos que nos levaram às casas dos que amamos, aos quartos ao lado de quem conhecemos os êxtases que o corpo não esquece. Uma rua nova pode ser leve, uma cidade nova pode ser leve. Até que vejamos a esquina pela segunda vez, depois alguns rostos que se repetem, o buraco que evitamos. Assim a leveza se converte em peso, em adiposidade que guardará o atalho pela viela, talvez ao lado da torta de bolacha que minha avó fazia, ou nas imediações do gosto exótico de um prato que talvez não voltemos a comer, mas que preservamos esperançosos, farta eternidade, a despeito da velocidade das informações com que nos bombardeiam os mundos orgânico e virtual, ansiosos por nos engordar com sua comida que não nutre. Misterioso regime de engorde, nunca sabemos o que ficará armazenado.
Se por vezes lembramos de coisas demais - palavras ásperas, canções inúteis feitas para grudar -, há, em contrapartida, o gordo conforto de reconhecer as muitas horas neste sofá em que agora escrevo a crônica, agora perdido na noite (e peço desculpas se de vocês me perco) em que uns cabelos se alastraram amplos pelo encosto, multitonal madeira, ora vermelha à luz, ora castanha à sombra, lembrança que engorda os olhos, os dedos, o nariz.
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Gorda e veloz. Gorda e lenta. Mas gorda memória. Toda magreza aqui é anorexia. A dieta da memória tem um só nome.
Esquecimento.