Por Eugênio Bucci, professor Titular da ECA-USP, articulista do Estadão e autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio, publicado pela Editora Autêntica em 2023
Com muita frequência, alguém compara o jornalismo investigativo com o trabalho de policiais. A comparação não é absurda, mas é errada. Não é absurda porque, obviamente, tanto o repórter quanto o detetive labutam para saber o que aconteceu de verdade, separando os acontecimentos reais das versões fantasiosas. A semelhança, portanto, existe. Mas, além desse ponto, as duas ocupações são irreconciliavelmente distintas. Tratá-las como análogas é um erro – e esse erro pode ser perigoso.
Na sua lida diária, o policial tem autorização judicial para ouvir telefonemas íntimos e para vasculhar correspondências e extratos bancários de gente suspeita (ou nem tão suspeita assim). O repórter, não; sua matéria-prima vem das inconfidências de quem fala um pouco além da conta, seja por vaidade, por deliberação ou por ressentimento ou descuido. A polícia se define por ser invasiva e impositiva, ela interroga e ordena; o jornalista apenas entrevista e observa.
Embora o jornalismo também ajude a esclarecer os acontecimentos, seus praticantes sabem que no dia seguinte tudo pode mudar
Não que essas duas profissões sejam as únicas que precisam ter um bom domínio do que se passa na realidade. O médico, para estabelecer um diagnóstico seguro para um caso difícil, vai buscar exames precisos, verossímeis e confiáveis. O cientista depende de análises empíricas rigorosas. O professor que corrige trabalhos de seus alunos e o árbitro que apita uma partida de futebol devem se ater à realidade fática. Nenhum deles pode se guiar pelo achismo. Logo, o jornalista e o detetive não estão sozinhos em seu apego aos fatos – mas, nem por isso, fazem a mesma coisa.
A maior diferença entre as duas ocupações não está nos métodos de cada uma – que em nada se parecem. Na verdade, a maior diferença está na maneira como as duas convivem com a incerteza. A polícia investiga os mistérios criminais para embasar decisões do Poder Judiciário – e estas, depois do trânsito em julgado, não admitem rediscussão. Assim, policiais e juízes são amigos das certezas definitivas. Combinadas, as duas funções definem a palavra final sobre um assunto controverso.
Na imprensa, é o contrário. Embora o jornalismo também ajude a esclarecer os acontecimentos, seus praticantes sabem que no dia seguinte tudo pode mudar. Aqui, não há certezas eternas – a discussão sobre os fatos é renovada todos os dias. A atualidade é sempre um enigma, e o futuro é incerto. Por isso a aventura da imprensa é tão fascinante.
* Periodicamente o Conselho Editorial da RBS convida uma voz da comunidade para escrever neste espaço sobre assuntos relacionados ao jornalismo