Uma série de roubos de obras clássicas russas avaliadas em quase dois milhões de euros (10,6 milhões de reais) em bibliotecas no leste da Europa deixou vestígios que apontam para leilões em Moscou.
Nos últimos dois anos, prateleiras da literatura russa do século XIX foram saqueadas na Polônia e nos países bálticos. Em todos estes casos as obras originais foram substituídas por falsificações.
A Biblioteca da Universidade de Varsóvia tomou conhecimento dos roubos no mês passado, que incluíram as primeiras edições de obras de Alexander Pushkin e Nikolai Gogol.
Segundo um funcionário da universidade, o valor dos livros roubados em Varsóvia ronda "um milhão de euros" (5,3 milhões de reais).
"É como se as joias da coroa tivessem sido roubadas", disse à AFP Hieronim Grala, ex-diplomata, especialista em política russa e professor da Universidade de Varsóvia, que ajudou a avaliar os danos.
Este roubo não é um caso isolado.
Bibliotecas importantes nos três países bálticos também foram roubadas e em todos os casos os roubos envolviam literatura russa do século XIX.
Segundo especialistas, as pistas levam a Moscou, onde obras semelhantes às roubadas foram vendidas em leilões.
- "Escala industrial" -
O primeiro caso conhecido ocorreu em abril de 2022 na Biblioteca Nacional da Letônia, onde três obras desapareceram.
Um georgiano foi condenado por esse roubo e sentenciado a seis meses de prisão, mas o seu cúmplice continua livre.
No mesmo mês, dois homens que afirmavam estudar a censura e a política editorial na Rússia do início do século XIX apareceram na biblioteca universitária da cidade de Tartu (Estônia) e pediram as obras de Pushkin e Gogol, de quase 200 anos atrás.
Apenas quatro meses depois, a biblioteca percebeu que eles haviam deixado oito exemplares de aparência convincente, e não os livros autênticos, cujo valor total foi estimado em 158 mil euros (cerca de 840 mil reais).
Em maio, a Biblioteca da Universidade de Vilnius, na Lituânia, descobriu que 17 dos seus livros russos mais valiosos também estavam desaparecidos.
"A maioria dos livros roubados foi substituída por cópias não originais", disse à AFP Gintare Vitkauskaite-Satkauskiene, porta-voz do Ministério Público lituano.
A Universidade de Varsóvia identificou até agora 79 livros desaparecidos, o que significa que sofreu as perdas mais significativas dos quatro países.
"Aqui, os ladrões agiram em escala industrial", disse à AFP um funcionário da biblioteca da Universidade de Varsóvia, sob condição de anonimato.
Enquanto os livros permaneciam no catálogo, os originais foram vendidos em Moscou.
"Há uma nota com data de 22 de dezembro de 2022 que diz que os livros estão no lugar", explica Grala à AFP.
"Naquele mesmo dia, em um leilão em Moscou, um destes livros foi vendido por 30.500 euros" (162.235 reais), acrescenta.
- "Organizado na Rússia" -
Fontes próximas à investigação da biblioteca de Varsóvia mostraram à AFP capturas de tela de leilões realizados pela casa de leilões russa Litfond com livros que levavam selos e números de catálogo da Universidade de Varsóvia.
"Está claro para mim que toda a ação foi organizada de forma centralizada a partir da Rússia", disse Grala à AFP.
A AFP entrou em contato com a Litfond, mas o seu diretor-geral, Sergei Burmistrov, não negou nem confirmou explicitamente qualquer irregularidade.
"A casa de leilões Litfond funciona no âmbito da legislação atual da Federação Russa e não aceitamos para venda ou vendemos quaisquer livros com selos de bibliotecas estatais existentes", declarou Burmistrov.
Para Grala, existe uma ligação clara que liga os roubos na Polônia e nos países bálticos à Rússia.
"Os três primeiros golpes afetaram países que os russos acusam de lutar contra a língua e a cultura russas", disse à AFP.
As relações entre Polônia e Rússia estão tensas há muito tempo, já que Varsóvia critica o Kremlin e a invasão russa da Ucrânia.
Grala disse estar "devastado" pelas perdas "irreversíveis" de livros russos que sobreviveram a duas revoltas nacionais e a duas guerras mundiais em solo polonês.
"Os bibliotecários da Universidade de Varsóvia, arriscando as suas vidas durante a guerra, construíram secretamente um telhado duplo e esconderam os livros para que não desaparecessem ou pegassem fogo", explicou.
"Mas não conseguimos protegê-los deste saque", disse ele, resignado.
* AFP