As inundações provocadas pela tempestade Daniel no leste da Líbia devastaram uma parte da cidade de Derna, o que provocou milhares de mortes e um número indeterminado de desaparecidos.
O que aconteceu?
A tempestade mediterrânea chegou à costa leste da Líbia na noite de domingo (10), atingiu a cidade de Benghazi e seguiu para o leste passando por Shahat, local da antiga cidade grega de Cirene, Al Marj, Al Baida e Susa (Apolônia de Cirene, na Antiguidade), mas afetou com especial violência a Derna.
As águas romperam duas represas do rio Wadi Derna na noite de domingo e uma poderosa corrente, semelhante à de um tsunami, arrasou bairros inteiros e destruiu pontes para depois avançar para o Mediterrâneo.
A cheia bloqueou muitas estradas, o que dificulta o acesso ao local da catástrofe.
Um país dividido
O rompimento das duas barragens no Wadi Derna é a demonstração do colapso da infraestrutura da Líbia depois da morte do ditador Muamar Kadafi e mais de uma década de guerra civil. Um dos países mais ricos em petróleo do mundo está dividido entre duas facções rivais: uma no leste e outra no oeste, cada uma apoiada por diferentes milícias e governos estrangeiros.
O Governo de Unidade Nacional (GNU), com sede em Trípoli, controla o oeste da Líbia. Seu líder, Abdul Hamid Dbeibeh, tem o reconhecimento da maior parte da comunidade internacional e recebe apoio da Turquia.
Já o Governo de Estabilidade Nacional (GEN), com base em Tobruk, liderado pelo general Khalifa Haftar, comanda o Exército Nacional Líbio (ELN) no leste do país - onde ocorreram as enchentes. O GEN tem apoio dos mercenários russos do Grupo Wagner.
A falta de um governo central atrapalha os investimentos em estradas e serviços públicos na Líbia. Durante anos, Derna foi ocupada por militantes islâmicos, até ser capturada pelo general Haftar, em 2019.
Qual é o balanço?
As autoridades que controlam o leste da Líbia, um país onde há dois governos rivais que controlam distintas partes do território, informaram, nesta quinta-feira (14), que 3,8 mil mortos foram registrados, mas temem que haja muitos mais. A Cruz Vermelha fala em pelo menos 5 mil mortos.
A região do leste do país onde ocorreu o desastre está sob controle de autoridades que não são reconhecidas pela comunidade internacional.
Uma autoridade da Federação Internacional de Sociedades da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho (FICR) informou que há um número "enorme" de mortos, que pode chegar a várias milhares de vítimas, com 10 mil desaparecidos. Outras autoridades afirmaram que o balanço pode superar 10 mil mortos.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM) informou que ao menos 30 mil pessoas foram deslocadas de Derna, às quais se somam 3 mil habitantes que tiveram que fugir de Al Baida e mais de 2 mil de Benghazi. Esta agência da ONU calcula que há 884 mil pessoas afetadas diretamente por esta catástrofe.
Por que houve tantos mortos em Derna?
Os especialistas explicaram que uma combinação entre a deterioração das infraestruturas, os edifícios construídos sem respeito às normas de planejamento urbano na última década e a falta de preparação para uma catástrofe deste tipo transformou esta cidade em um cemitério a céu aberto.
A maioria das mortes poderia ter sido evitada, declarou Petteri Taalas, diretor da Organização Meteorológica Mundial (OMM), na quinta-feira (14):
— Os avisos poderiam ter sido emitidos e as forças de gestão de emergência teriam sido capazes de realizar a evacuação da população.
O alto funcionário da ONU observou que os anos de conflito que assolaram a Líbia destruíram em grande parte a rede de observação meteorológica.
A Líbia, um país rico em petróleo, mergulhou no caos e na guerra após a revolta popular que derrubou o ditador Muammar Kadafi em 2011 e há atualmente dois governos disputando o poder, um reconhecido pela ONU na capital Trípoli, a oeste, e outro no zona leste onde ocorreu o desastre.
"Arrastados pela água"
Um fotógrafo da AFP afirmou que o centro de Derna parece um terreno esmagado por um rolo compressor, com árvores arrancadas e edifícios e pontes destruídos.
Os moradores da cidade, que tinha 100 mil habitantes, relataram que centenas de corpos estão sob toneladas de lama e escombros arrastados pela água.
— A água estava carregada de lama, as árvores com pedaços de ferro. A enchente percorreu quilômetros antes de ocupar o centro da cidade e arrastar ou destruir tudo que encontrava pela frente — disse Abdelaziz Busmya, 29 anos, que morava em um bairro que não foi afetado pela inundação.
Ele disse que as autoridades líbias não adotaram as medidas de prevenção necessárias e se contentaram em ordenar que as pessoas permanecessem em casa antes da chegada da tempestade Daniel, que provocou estragos em sua passagem pela Turquia, Bulgária e Grécia.
Mostras de DNA
Dezenas de corpos são encontrados a cada dia, alguns enterrados em valas comuns. Outros continuam presos em casas ou foram arrastados para o mar e depois devolvidos pelas ondas, afirmaram as autoridades do Departamento de Saúde, que temem possíveis epidemias ligadas à decomposição de cadáveres.
As autoridades enfrentam um dilema: conservar os corpos encontrados para possibilitar a identificação ou enterrá-los rapidamente para evitar a decomposição, já que a capacidade dos necrotérios é limitada.
— Estamos tentando (...) obter mostras de DNA e fotos das vítimas antes de enterrá-las para ajudar na identificação mais tarde — afirmou o tenente Tarek al Kharraz, porta-voz do ministério do Interior do governo não reconhecido no leste do país.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) distribuiu 6 mil sacos mortuários na cidade.
O Programa Mundial de Alimentos anunciou que começou a fornecer ajuda alimentar a mais de 5 mil famílias deslocadas pelas inundações e afirmou que milhares de pessoas em Derna estavam "sem comida ou abrigo".
E o Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU iniciou uma campanha urgente para arrecadar mais de US$ 71 milhões para ajudar as 250 mil pessoas sob maior risco entre as 884 mil que foram afetadas.
Estados Unidos, União Europeia e vários países do Oriente Médio e norte da África prometeram enviar ajuda. Equipes estrangeiras já estão na região.
Ajuda internacional
Comboios de ajuda vindos da Tripolitania, no oeste do país, começaram a chegar a Derna na manhã de segunda-feira (11). O governo internacionalmente reconhecido, liderado por Abdelhamid Dbeibah, anunciou o envio de dois aviões médicos e um helicóptero, 87 médicos, uma equipe de socorristas e cães de busca.
O diretor do Escritório de Coordenação Humanitária da ONU (OCHA), Martin Griffiths, anunciou na quarta-feira (13) a liberação de US$ 10 milhões (R$ 48 milhões) de um fundo de emergência e disse que "uma equipe forte" está destacada no terreno para apoiar e financiar a resposta internacional.
Griffiths declarou nesta sexta-feira (15) que "a extensão" da tragédia ainda é desconhecida.
O Programa Mundial de Alimentos (PMA) informou que começou a prestar ajuda a mais de 5 mil famílias deslocadas pelas cheias e disse que há milhares de pessoas "sem comida e sem abrigo".
A ONU, os Estados Unidos e vários países do Oriente Médio e do Norte da África também prometeram enviar ajuda e já foram enviadas equipes de resgate estrangeiras na esperança de encontrar sobreviventes.