Nada define tanto a idiossincrasia de Quino como aquele quadrinho em que Mafalda mostra um globo terrestre ao seu ursinho de pelúcia e o pergunta "Gostou? Porque é um modelo, o original é um desastre". O ceticismo e a amarga reflexão sobre os infortúnios do mundo afloram nos comentários ásperos, sarcásticos e transgressores da menina rebelde, transformada no outro eu de Joaquín Lavado, conhecido mundialmente como Quino, que morreu nesta quarta-feira (30), aos 88 anos.
As ideias do cartunista e humorista, como bom artista, foram expressas através de seus quadrinhos e em poucas aparições públicas.
Retraído como Felipito — outro de seus lendários personagens companheiros da pequena militante —, Quino desfilou por cenários distintos onde era homenageado por seu trabalho, enquanto parecia não saber o que responder, emocionado, mas um tanto envergonhado.
Quino desenhou e escreveu Mafalda de 1964 até 1973, mas a menina permaneceu nas novas gerações e é usada como símbolo pelo movimento feminista.
Filha dos anos 1960 e 1970
Quino justificou o impacto de seu cartum pelo momento histórico em que aparece e se desenvolve, os anos 1960 e 1970, de uma explosão criativa e revolucionária em todas as áreas.
— Mafalda saiu bem porque a época em que a criei era boa, embora houvesse conflitos como sempre. O ser humano é quilombero (rebelde) por natureza — explicou.
Terceiro filho de pais republicanos espanhóis de classe média, ele mergulhou no mundo dos desenhos por influência de um tio que trabalhava em um jornal de sua cidade natal Mendoza (oeste), perto da Cordilheira dos Andes.
Seus pais faleceram antes de sua adolescência, e um irmão mais velho teve que ajudá-lo a sobreviver.
— Sofri muito porque vivia em condições precárias enquanto perambulava por redações de jornais e revistas sem muito sucesso. Dividia um cômodo de pensão com três ou quatro rapazes — lembrou ele.
Sua vida foi iluminada quando finalmente conseguiu publicar em revistas, momento que definiu como "um dos mais felizes" de sua existência.
Quino esteve casado por mais de meio século com Alicia Colombo, que morreu em 2017.
Mundo irresponsável
As histórias da menina com nome de princesa italiana estão traduzidas em 26 idiomas — só na Argentina venderam 20 milhões de exemplares.
O retrato de Mafalda está pendurado na Galería dos Ídolos Populares da Casa Rosada (governo), junto com lendas como o ex-jogador de futebol Diego Maradona, o cantor de rock Charly García, o ex-tenista Guillermo Vilas, o bailarino clássico Julio Bocca, o automobilista Juan Manuel Fangio e o cantor de tango Carlos Gardel.
A figura, que deixava os adultos mudos e paralisados com suas perguntas e comentários ácidos, foi classificada pelo intelectual italiano Umberto Eco como "uma heroína raivosa". Segundo o escritor, ela "rejeita o mundo como é, reivindicando seu direito de continuar sendo uma menina que não quer se apoderar de um universo adulterado pelos pais.
Não se apodera do horror das guerras, da injustiça e da hipocrisia nas relações sociais. O globo terrestre volta a aparecer em outro quadrinho, e Mafalda pendura nele uma placa que diz "Irresponsáveis trabalhando".