Na primeira reação oficial à ameaça do presidente Donald Trump de retaliar a nova lei de segurança para Hong Kong, a China atacou o que considera uma contradição dos americanos ao tratar manifestações de rua.
— Por que os EUA glorificam as ditas forças pró-independência de Hong Kong como heroicas, mas chamam manifestantes desapontados com o racismo no seu país de arruaceiros? — questionou Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês.
Os Estados Unidos vivem, desde semana passada, uma onda de protestos decorrentes da morte do negro George Floyd, sufocado por um policial branco. Trump teve de se esconder no bunker da Casa Branca no fim de semana, e o toque de recolher está em vigor em diversos Estados.
A dura afirmação chinesa aponta um caminho ainda não testado na disputa geopolítica que envolve as duas maiores economias do mundo: o questionamento do "soft power", o poder brando que emana de valores culturais, uma arma americana em uso há décadas.
Zhao falava sobre a reação de Pequim à decisão americana de limitar a entrada de cidadãos chineses e encerrar os privilégios comerciais concedidos a Hong Kong por onde passam 65% dos investimentos feitos pela China e aplicados no país.
— Toda declaração ou ação que prejudique os interesses da China encontrará um firme contra-ataque — disse o porta-voz.
Na quinta-feira (27), o Congresso chinês aprovou uma nova lei, que deve ser regulamentada até setembro, visando punir atos de secessão, terrorismo ou dissenso na antiga colônia britânica, devolvida à ditadura comunista asiática em 1997.
O ato é visto como um golpe fatal contra os manifestantes que pedem a manutenção da democracia no território, que vive sob um sistema dual: é comandado por Pequim, mas tem Judiciário autônomo, liberdade de expressão e um regime capitalista altamente desregulado garantido por tratado até 2047.
Desde meados do ano passado, protestos por mais liberdades abalam Hong Kong. A pandemia de coronavírus arrefeceu o ímpeto dos manifestantes, mas o anúncio da nova lei levou manifestantes para a rua de novo e disparou a reação dos EUA.
— Por que os EUA criticam a bastante comedida polícia de Hong Kong, mas atiram em seus manifestantes e até mobilizam tropas da Guarda Nacional? — questionou o porta-voz — O incidente reflete o quão severo é o problema do racismo e da brutalidade policial nos EUA, e o quão urgentemente esses problemas precisam ser resolvidos — afirmou, citando então direitos legais de minorias.
Não deixa de ser irônico, dado o histórico da repressão do Estado chinês a minorias como os uigures ou os tibetanos, ver uma autoridade pretendendo dar lições aos americanos. Isso não é inédito. A União Soviética tinha como política oficial questionar o racismo norte-americano desde antes da Segunda Guerra Mundial. Em 1931, liderou uma campanha mundial em prol de jovens negros condenados injustamente por estupro em Scottsboro (Alabama).
Já na Guerra Fria, a propaganda soviética era pródiga em apontar os distúrbios raciais nos EUA, em oposição a uma suposta superioridade moral do regime comunista os crimes contra grupos étnicos dentro do país eram convenientemente esquecidos. Na versão 2.0 da disputa, agora opondo a potência estabelecida ante outra que emerge, o debate funde a questão cultural com a geopolítica.
A China é um gigante, mas ainda é inferior aos EUA economicamente. Do ponto de vista militar, apesar de ser uma potência nuclear e estar investindo pesadamente em armamentos, ainda gasta quase um quarto do que os EUA dispendem.
A ascensão chinesa dependeu muito de sua associação com os EUA, de quem é o principal parceiro comercial, a partir da abertura entre os dois países nos anos 1970. Como todo poder estabelecido, contudo, Washington teme perder espaço econômico e também militar, a começar pelo domínio do Pacífico Ocidental e suas rotas marítimas. De tempos em tempos, flexiona músculos bélicos para lembrar sua condição única de projeção de poder.
Em 2017, Trump assumiu e declarou uma guerra comercial visando corrigir o que chama de distorções na relação com Pequim. Apesar de uma trégua temporária, a retórica segue inflamada, e a pandemia acabou reacendendo a troca de acusações.
Washington anunciou que deixará a Organização Mundial da Saúde (OMS), por ser um órgão sob influência chinesa, e critica a forma com que a ditadura lidou com o início da pandemia, que ocorreu em seu território. Na mão inversa, Pequim defende o multilateralismo e aponta para o fato de que os EUA são o centro da pandemia hoje, com muito mais casos de covid-19 do que a China.
Sobre Hong Kong, os EUA já vinham dando apoio aos manifestantes desde 2019. Em novembro, o Congresso aprovou um ato, sancionado por Trump, prevendo punições a autoridades responsáveis por abusos na repressão aos protestos. Agora, com a turbulência nas ruas americanas, mais um item entra na agenda de contenciosos das duas potências.