Se você acompanha a política norte-americana, lembrará da cena: durante entrevista coletiva, o presidente dos Estados Unidos discute com um repórter, que insiste em fazer perguntas enquanto o chefe de Estado morde os lábios, gesticula, xinga o jornalista e tenta passar a palavra a outro profissional, esperando que questões menos incômodas apareçam. O repórter insiste. Uma funcionária da Casa Branca, então, passa na frente de todos e tenta arrancar o microfone do jornalista, sem sucesso.
O presidente é Donald Trump. O repórter, Jim Acosta, da rede de TV CNN. O duelo, em novembro de 2018, marcou o ápice da tensa relação entre o 45º chefe de Estado americano e a imprensa do país. As imagens do bate-boca correram o mundo, mas poucos sabem, fora de Washington, os detalhes de como se chegou até aquele momento, no qual, segundo relatos de quem estava na sala, parecia que Trump desceria do púlpito para dar um soco em Acosta.
O antes, o durante e o depois da cena surgem agora, descritos pelo ponto de vista do jornalista da CNN. Em O Inimigo do Povo – Uma Época Perigosa para Dizer a Verdade, Acosta, que cobre a Casa Branca há cinco anos, revela como Trump, seus secretários (cargo equivalente ao de ministro) e assessores fizeram erodir, desde a campanha, o trecho que a maioria dos americanos se orgulha da constituição dos EUA: a primeira emenda, que garante liberdade de imprensa e expressão.
O título da obra é uma referência a como Trump passou a chamar os veículos de comunicação – além de CNN, também NBC, The New York Times e Washington Post são atacados com frequência pelo presidente, por meio do Twitter ou em pronunciamentos ao vivo. Trump associa esses órgãos de comunicação a “fake news” ou os chama de “inimigos do povo”. Embora seja obrigação de todo servidor público prestar contas à população – e os jornalistas são mediadores desse diálogo –, o governante entende que não precisa da imprensa para se comunicar com os eleitores. Prefere as redes sociais. E, pelo perfil que é construído na obra de Acosta, percebe-se como Trump não gosta de ser questionado. O jornalista conta como seus colegas passaram a redobrar os métodos de apuração: “Um deslize, e Trump nos chamava de ‘fake news’. Mas lembre que, quando usava essa expressão, ele não falava sobre reportagens falsas. O que o incomodava eram matérias negativas. Ele estava simplesmente tentando ameaçar a imprensa para que ela fizesse uma cobertura mais favorável”, afirma Acosta no livro.
Essa tensão não começou naquele bate-boca da Sala Leste da Casa Branca. Acosta, que acompanhou Trump em toda a campanha de 2016, conta como a rejeição foi crescendo. A primeira mentira do governo, na visão do repórter, ou “fatos alternativos”, como prefere o secretário de imprensa Sean Spicer, foi logo após a posse, em 2017, quando emissoras de TV compararam os públicos de Barack Obama e de Trump. As fotos aéreas mostravam menos gente na cerimônia do republicano, o que enfureceu Trump.
– Fake news – disse ele, na sede da CIA. – Estou em guerra com a mídia. Tínhamos uma multidão imensa. Vocês viram. Lotado. E mostram um lugar vazio.
Para quem acompanhara as rixas de campanha, não era novidade. Trump é obcecado com o tamanho de sua plateia. Era comum, a cada comício, reclamar que os cinegrafistas não desviavam suas câmeras do palco para mostrar as milhares de pessoas assistindo a seus discursos. Para Trump, o tamanho da plateia é tão ou mais importante do que qualquer coisa que um jornalista viesse a dizer sobre seus discursos. “Criticou sua retórica? Sem problemas. Disse que havia poucos na plateia? Problemão”, narra Acosta.
Um dos episódios mais tensos da relação entre Trump e a imprensa eclodiu em agosto de 2017, quando dezenas de supremacistas brancos, neonazistas, membros da Ku Klux Klan (KKK) e outros extremistas marcharam pelo campus da Universidade da Virgínia. Eles protestavam contra a remoção da estátua dedicada ao herói de guerra confederado Robert E. Lee, em Charlottesville. “Judeus não vão nos substituir” e “vidas brancas importam”, diziam. A demonstração de racismo explodiu em violência física, cujo ápice foi o atropelamento, por um supremacista branco, de um grupo que protestava contra eles. Uma mulher de 32 anos morreu.
A primeira reação de Trump, que havia vencido as eleições usando uma retórica fortemente racial, acusando Obama de não ter nascido nos Estados Unidos e chamando imigrantes mexicanos de “estupradores”, foi condenar tanto os supremacistas brancos quanto seus opositores. Quando Acosta o questionou sobre a razão de não ter condenado nominalmente os grupos de ódio, atribuindo o mesmo peso aos dois lados, o presidente tergiversou e voltou a acusar a CNN de “fake news”.
Mas não há só trocas de acusações no livro, editado pela HarperCollins Brasil. Pelos olhos de Acosta é possível conhecer os bastidores do trabalho dos jornalistas em Washington e da relação com assessores de imprensa do governo: as conversas no cafezinho, as informações em off, os acessos restritos no prédio da Avenida Pensilvânia, 1.600, endereço da Casa Branca, e sobretudo a rotina de como é cobrir a Era Trump, um presidente que começa o dia, segundo o repórter, fazendo afirmações muitas vezes falsas ou infundadas no Twitter: “Os jornalistas precisam passar boa parte do tempo mostrando as coisas como elas realmente são. É um processo necessário, ainda que nossos desmentidos possam ser frustrantes para fãs mais ardorosos de Trump”, diz.
Uma das coisas que aprendi sobre Trump é que ele não gosta de ser questionado sobre suas mentiras. Por isso, explodiu contra mim.
JIM ACOSTA
Jornalista e escritor norte-americano
Comentando entrevistas, transcrições, conflitos e discussões com o secretário de imprensa, Sean Spicer, com o genro de Trump, Jared Kushner, e com o ex-estrategista-chefe Steve Bannon, Acosta apresenta uma perturbadora crônica das dificuldades diárias de cobrar e questionar a Casa Branca em assuntos que o governo prefere não ver nas manchetes.
Então chega-se ao episódio de novembro de 2018. Como filho de migrante cubano, Acosta tem interesse especial sobre como Trump trata a questão. Foi questionando por que o presidente chamava de invasão a caravana de milhares de migrantes que marchavam pelo México rumo à fronteira com os EUA que ele acabou enfurecendo o chefe da nação. Como em outras ocasiões, já naquele momento, quando o jornalista começava uma pergunta, Trump ironizava:
– Lá vamos nós.
E iniciou-se o embate. O duelo durou cerca de cinco minutos e continuou depois, quando o microfone já não estava mais com Acosta. A estratégia do repórter de continuar perguntando, mesmo diante da irritação explícita do presidente, foi controversa e o colocou em risco profissional e pessoal – são comuns as ameaças de morte nas redes sociais por parte de seguidores de Trump. Mas Acosta, mais do que cansado dos ataques de assessores e do próprio presidente pelo Twitter ou publicamente, nas coletivas, estava disposto a não baixar a cabeça. Na obra, ele explica que passaria a exigir que o governante falasse a verdade. Passou a mostrar que fatos importam e que, mesmo sendo momento perigoso para dizer a verdade, ela é mais importante do que nunca.
"A Casa Branca queria destruir minha carreira"
Por e-mail, Jim Acosta concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH
Você já esperava a reação de Trump naquele dia do bate-boca?
Não. Eu não tinha ideia do que iria acontecer. Simplesmente contestei a falsa alegação de Trump durante as eleições de meio de mandato de que a caravana de migrantes representava uma “invasão”. Uma das coisas que aprendi sobre Trump é que ele não gosta de ser questionado sobre suas mentiras. Por isso, explodiu contra mim. E é por isso que a Casa Branca tentou tirar meu passe de imprensa. Como você pode ler no meu livro, os próprios seguidores de Trump repetem isso. Veja o que aconteceu em El Paso (em agosto deste ano, um homem cometeu um atentado em massa em um Walmart, matando 22 pessoas). O atirador escreveu em seu manifesto que queria impedir uma “invasão” de migrantes. As palavras do presidente importam.
O que aconteceu imediatamente após essa discussão com Trump?
A Casa Branca cancelou meu passe de imprensa (de acesso ao prédio). Então, como se fosse uma cena retirada diretamente de um livro de George Orwell, a Casa Branca tuitou um vídeo falso que fazia parecer que eu havia agredido a mulher que tentava pegar meu microfone. Foi surreal e perturbador. A Casa Branca estava enviando uma mensagem de que queria destruir minha carreira. Nenhum governo deve jamais ter permissão para fazer isso. Felizmente, um juiz decidiu que a Casa Branca havia cometido um erro e restaurou meu passe de imprensa.
Você recebeu apoio de outros jornalistas depois daquele dia?
Muito. E isso continuou durante todo o meu caso com relação ao passe de imprensa no tribunal.
Recebi uma ameaça de morte uma semana depois de Trump se tornar presidente. Meus colegas também têm recebido. No dia em que um jornalista for morto nos EUA por causa da retórica do presidente, nosso país terá mudado para sempre.
JIM ACOSTA
Jornalista e escritor norte-americano
Como é hoje o relacionamento com a assessoria de imprensa?
A assessoria de imprensa da Casa Branca acabou com os briefings diários para os repórteres. Agora, precisamos principalmente fazer perguntas ao presidente em frente ao helicóptero, o que faz tanto barulho que você não consegue ouvir nossas perguntas. Apenas as respostas dele. Isso ocorre de propósito. Muitos de seus funcionários também evitam nossas perguntas. Quando Kellyanne Conway (assessora da Casa Branca) fala com os repórteres, ela passa a maior parte do tempo insultando membros da imprensa. É uma vergonha. E não vemos muito a secretária de imprensa, Stephanie Grisham (porta-voz do governo Trump). Ela costuma se esconder dos jornalistas.
E com Trump? Ele fala com você durante as entrevistas hoje em dia?
Trump evita responder minhas perguntas. Mas isso não vai me impedir de fazer o meu trabalho. Isso diz mais sobre ele do que sobre mim.
Você diz que os jornalistas devem buscar neutralidade, mas, ao mesmo tempo, que há episódios nos quais é impossível ser neutro. Poderia nos dar um exemplo?
Quando o presidente se equivoca sobre neonazistas que estão agindo violentamente, temos de relatar isso. Nunca pensei que ouviria um presidente dizer que “havia pessoas boas nos dois lados” (no episódio do confronto entre movimentos racistas e opositores em Charlottesville). Como escrevo no livro, não há gente boa entre os nazistas. Não há dois lados em uma história quando se trata de certo ou errado.
Quais são os riscos quando um presidente considera os jornalistas “inimigos do povo”?
Recebi uma ameaça de morte uma semana depois de Trump se tornar presidente. Meus colegas também têm recebido. No dia em que um jornalista for morto nos EUA por causa da retórica do presidente, nosso país terá mudado para sempre. É algo com que me preocupo muito.
Os ataques de Trump à imprensa estão sendo copiados?
Sim. Esse vírus se espalhou pelo mundo. Outros líderes eleitos estão reprimindo jornalistas. Veja como Jair Bolsonaro usou o termo “notícias falsas” na Casa Branca, em visita a Trump, no início deste ano. Ele parecia um mini-Trump.