Uma guerra é travada na América Latina sem o uso de blindados, navios, caças ou tropas. Em busca de influenciar a opinião pública e fazer uma espécie de contraponto ao discurso ocidental, a Rússia ampliou seu alcance com investimentos robustos em agências de notícias estatais, abrindo escritórios, contratando jornalistas locais, oferecendo conteúdos e estabelecendo parcerias com veículos regionais de comunicação.
Como maior país latino, o Brasil é o palco principal de atuação na região. Daqui, a Sputnik, agência de notícias russa, busca irradiar a narrativa do governo Vladimir Putin e concorrer com as de veículos de comunicação norte-americanos, a exemplo da rede CNN, de jornais como The New York Times e de agências de notícias como a Associated Press (AP). A diferença é que essas são empresas privadas, que, com décadas de atuação, baseiam-se em princípios de independência jornalística e diversidade de pontos de vista e adotam tom crítico aos governos de seus países.
A Sputnik é uma agência internacional de notícias operada pela empresa estatal Rossiya Segodnya. O conglomerado foi criado por decreto por Putin e incorpora o antigo serviço de notícias RIA Novosti e a rádio Voz da Rússia. De acordo com o Kremlin, o objetivo da agência é “fornecer informações sobre a política estatal russa e a vida e a sociedade russas para o público no exterior”. O então chefe de gabinete de Putin, Sergei Ivanov, disse na ocasião que a Rossiya Segodnya estava sendo criada para aumentar a eficiência de custos na mídia estatal russa. Os críticos denunciam como uma tentativa de consolidar o controle estatal sobre o setor de mídia. A atuação de Sputnik é questionada por governos ocidentais. Não raras vezes a agência é acusada de propagar notícias falsas.
– Na China e na Rússia, a tensão entre governo e imprensa foi suprimida por ações governamentais. Esses governos já deram todos os sinais de que não acreditam na imprensa como instituição independente.
Não cansam de dizer que a imprensa mente – afirma Eugênio Bucci, professor de Jornalismo da ESPM e ex-presidente da Radiobrás.
O pesquisador criou o termo “fake newsroom”, juntando as expressões “fake” (falsa) e “newsroom” (redação de notícias, em inglês) para ironizar esses órgãos. Isso porque, na visão de Bucci, a Sputnik tem aparência de empresa jornalística, porém, produz conteúdo alinhado aos interesses do governo russo, sem visão crítica.
– São falsas redações. Parecem redações jornalísticas, mas são máquinas de propaganda – pontua.
Em seu site em português, a Sputnik identifica-se como uma “agência moderna de notícias”, cujos “produtos incluem feeds de notícias, sites, redes sociais e aplicativos móveis, radiodifusão e centros de imprensa multimídia”. A agência tem mais de 30 escritórios, em países como EUA, França, Alemanha, Egito e Reino Unido.
No Brasil, a empresa tem sede no Rio de Janeiro, onde atuam 15 jornalistas. A Sputnik estabelece parcerias com sites nacionais.
Adota tom crítico ao governo de Jair Bolsonaro e questiona o alinhamento da atual política externa brasileira a Washington. Chama a atenção o destaque dado a pautas sobre forças armadas. Na ocasião do acordo que permitirá aos norte-americanos utilizarem a base de lançamento de foguetes de Alcântara, no Maranhão, um artigo questionou: “’Ocupação’ de Alcântara marcaria início do fim da soberania brasileira?”. Em novembro, a Sputnik publicou notícia que valoriza o lobby dos praças na proposta de reforma da Previdência dos militares, motivo de preocupação da cúpula das Forças Armadas: “Bolsonaro ‘traiu’ militares, esquerda ‘lançou uma boia’, diz representante da categoria”.
Para o cientista político da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fabiano Mielniczuk, especialista em Rússia, a noção de que a presença da Sputnik na América Latina representa uma ameaça reforça a ideia de que a região é o quintal dos EUA, visão que o pesquisador rejeita.
– Antes de tratarmos a Rússia como intrusa, devemos nos perguntar por que se pressupõe que a região só será estável se houver submissão aos interesses materiais e informacionais dos EUA. Há muitos analistas e debatedores da Sputnik que são acadêmicos respeitados e que não encontram espaço em mídias tradicionais exatamente por fundamentarem suas opiniões com críticas ao Ocidente – diz.
A Rússia é classificada como “não livre” pela organização Freedom House, que identifica liberdades civis no planeta. No ranking da organização Repórteres Sem Fronteiras, o país ocupa a 149ª posição – quanto mais próximo do 180º e último lugar, maior é a perseguição a jornalistas. O Brasil está em 105º, e os EUA, em 48º.
Conforme a entidade, “o Kremlin aumentou a pressão contra a mídia independente, com prisões, buscas arbitrárias e leis de mordaça”. Um dos casos mais notórios foi o do jornalista Ivan Golunov, do jornal Meduza e especializado em revelar escândalos de corrupção. Ele foi detido em Moscou, acusado de tráfico de drogas. Após revelação de que oito de nove imagens “incriminatórias” eram falsas, a polícia disse que houve engano.
Em outubro, durante o 4º Fórum de Mídia dos Brics, no Brasil, Sputnik propôs a criação de uma plataforma única de combate às notícias falsas.
Na ocasião, o editor Dmitry Gornostaev afirmou que Google e Facebook associaram-se a meios de comunicação para verificar dados, arrogando-se o direito de ditar a verdade.
A estratégia de expansão na América Latina já foi adotada na África, onde a Rússia tem lançado uma ofensiva diplomática. Em outubro, Putin recebeu, em Sochi, 43 governantes africanos, prometendo dobrar em cinco anos o volume de negócios com o continente. No campo midiático, a emissora de TV estatal RT fez acordos com veículos públicos locais para retransmitir documentários. O problema é que há suspeitas de interferência russa por meio de sites de notícias falsas. Uma semana depois do encontro em Sochi, o Facebook anunciou ter retirado do ar contas vinculadas a Yevgeny Prigozhin, o empresário supostamente por trás da notória fábrica de trolls da Rússia, que buscava influenciar a política de países africanos. Os EUA já indiciaram Prigozhin por interferir nas eleições de 2016. O chefe da política de segurança do Facebook, Nathaniel Gleicher, disse que a Rússia usou 200 contas falsas para atingir mais de 1 milhão de seguidores na África.
Uma das redes estava centrada no Sudão, onde, em 2018, a Rússia tentou, sem sucesso, sustentar no poder o ditador Omar al-Bashir, deposto em abril. Uma página do Facebook, mascarada como site de notícias chamado Sudan Daily, republicou artigos da Sputnik.
A Sputnik atacou o Facebook, considerando o gesto um ato de censura. Junto com a RT, a agência é acusada pelos serviços de informações norte-americanos de ter manipulado a percepção dos eleitores nas eleições que levaram Donald Trump à presidência, em 2016.
Além de defender interesses russos, a agência faz contenção de danos à imagem em casos como o do envenenamento do ex-agente Sergei Skripal e sua filha no Reino Unido. A política britânica apontou como suspeitos dois homens ligados à inteligência russa. A então primeira-ministra Theresa May confirmou a tese. A Sputnik afirmava, em junho:
“A Alemanha ainda não viu evidência do envolvimento russo no caso Skripal”.
Tentativas de controle da informação não são algo novo. O jornalista Philip Knightley, no livro A Primeira Vítima, descreve como diferentes governos buscaram manipular a opinião pública por meio da imprensa, dos conflitos da Crimeia ao Kosovo. Também veículos ocidentais tiveram atuação questionada na Guerra do Iraque, em 2003. The New York Times e CNN fizeram cobertura favorável à invasão – e posteriormente admitiram o erro. Para Mielniczuk, jornais russos e chineses sofrem mais influência do que agências ocidentais devido às especificidades dos sistemas políticos:
– Rússia e China não se enquadram nos moldes de democracias liberais ocidentais e, por isso, são classificadas como nações com regimes autoritários. Por isso, o controle estatal em agências de informação é tratado como instrumento de governo. Porém, seus modelos não são diferentes do que ocorre com a Voz da América e a Radio Free Europe/Radio Liberty, criadas na Guerra Fria e que seguem pautando o Ocidente. Por considerarmos esses países seguidores do modelo democrático, as notícias são consideradas verdadeiras. Isso é ilusão. Sputnik e Xinhua são instrumentos de governo tanto quanto os governos influenciam as mídias no Ocidente.
Para Eugênio Bucci, empresas públicas de comunicação ocidentais, como BBC e Deutche Welle, não podem ser comparados a Sputnik:
– Não se confundem em nenhum ângulo com o que a Rússia está fazendo porque são organismos de sociedades democráticas e que têm a gestão de conteúdo independente de ingerências governamentais.
O diretor-executivo da News Media Europe, Wout van Wijk, acredita que a tentativa de países usarem a mídia para desestabilizar as sociedades pode ter consequências a longo prazo.
– É essencial que nos concentremos na promoção da mídia independente, tanto da pressão política quanto financeira. Ao mesmo tempo, são necessários programas que ajudem os consumidores a entender a natureza do conteúdo que estão consumindo – afirma o executivo do órgão que reúne mais de 2,4 mil veículos europeus.
"Nossa missão é uma cobertura imparcial", diz editor-chefe da Sputnik Brasil
Em entrevista a GaúchaZH, Lincoln Martins, editor-chefe da agência de notícias Sputnik Brasil, explicou os princípios editoriais do veículo de comunicação.
Qual o objetivo da implantação da Sputnik no Brasil?
A Sputnik é uma das maiores agências internacionais, trabalhando em 33 idiomas. Além disso, a agência conta com radiodifusão analógica e digital em diversos idiomas em mais de 90 cidades do mundo e na Internet. Diariamente, os feeds de notícias da Sputnik fornecem informações às principais edições por todo o mundo em inglês, árabe, espanhol, chinês e persa. O número de usuários dos recursos informacionais da Sputnik abrange mais de 60 milhões de pessoas por mês, e em nossas 22 representações por todo o mundo, do Rio de Janeiro a Pequim, trabalham mais de mil pessoas de diferentes nacionalidades. O Brasil é o quinto país do mundo em termos territoriais e populacionais. É um parceiro da Rússia no âmbito do BRICS, e, portanto, a presença em um mercado tão grande é importante para a Sputnik. Além disso, o Brasil se destaca como o maior país lusófono do mundo. O conteúdo criado pela representação brasileira também é distribuído em Portugal e em países africanos como Angola e Moçambique.
Há algum alinhamento editorial entre a agência de notícias Sputnik e setores da esquerda no Brasil?
A nossa missão é uma cobertura ponderada e imparcial dos eventos por todo o mundo. Os princípios do nosso trabalho são a exclusividade, rapidez, confiabilidade e apresentação de diferentes pontos de vista. Nós não damos qualquer preferência à esquerda ou à direita, pois isso contradiz a nossa política redacional. Porém, em vários países as autoridades têm uma atitude preconceituosa contra nós, nos são negados entrevistas e comentários. É uma decisão delas, já que nós sempre permanecemos abertos ao diálogo.
O lema da Sputnik é “Falando nas entrelinhas”, o que significa que nós levantamos assuntos importantes para a sociedade que, por diferentes motivos, são deixados de lado por outros veículos da mídia.
LINCOLN MARTINS
Editor-chefe de Sputnik
A Sputnik, ao ter uma representação no Brasil, busca disseminar um discurso que proporcione um ponto de vista alternativo à visão hegemônica normalmente presente em empresas de comunicação ocidentais?
O lema da Sputnik é “Falando nas entrelinhas”, o que significa que nós levantamos assuntos importantes para a sociedade que, por diferentes motivos, são deixados de lado por outros veículos da mídia. Além disso, nós desmentimos fake news. Refletindo o quadro de um mundo multipolar, os sites da Sputnik têm como seu público principal aqueles que estão interessados em analisar diferentes pontos de vista alternativos.
Como vocês estão respondendo às suspeitas de que o jornalismo da Sputnik está a serviço da propaganda do governo da Rússia?
Frequentemente somos acusados de difundir “propaganda do Kremlin”, contudo, ninguém apresenta quaisquer evidências reais dessas afirmações, por mera ausência destas. O nosso escopo refere que devemos cobrir mais detalhadamente a política oficial da Rússia. Em geral, a Sputnik foi criada inclusive para recuperar uma atitude justa e objetiva em relação à Rússia. Entretanto, nós nos orientamos pelos padrões profissionais do jornalismo internacional. A atividade da Sputnik é financiada pelo orçamento público da Federação da Rússia, porém, os representantes de todos os níveis de poder russos estão proibidos legalmente de interferir em questões da nossa política redacional.
Como vocês respondem a reportagens, como a do jornal The New York Times, que acusam a Sputnik de disseminar informações falsas?
Essas acusações são infundadas. É claro que qualquer edição pode se enganar. Nos raríssimos casos em que cometemos erros, sempre os admitimos e corrigimos. Porém, são muitos mais frequentes os casos em que outros precisam admitir seus erros em relação a nós. Por exemplo, a edição francesa 20 Minutes e o jornal britânico The Guardian foram obrigados a pedir desculpas à Sputnik por terem chamado de fake uma foto, feita pelo nosso repórter na França, de dois jovens sorrindo e levantando a fita delimitadora durante a evacuação da zona perigosa em torno da Catedral de Notre-Dame de Paris em chamas, em abril deste ano. Aquelas edições foram forçadas a fazê-lo devido a uma forte pressão do nosso lado e à apresentação de provas da autenticidade da imagem, inclusive os seus metadados. É apenas um caso particular, já que o problema é muito maior. Nós trabalhamos em condições de uma pressão informacional sem precedentes contra a Rússia e a mídia russa. Por exemplo, um estudo recente nosso revelou que as notícias positivas sobre a Rússia no top 10 dos veículos da mídia nos EUA são apenas 0,2%, enquanto as notícias negativas representam 91%. Acreditamos que isto é uma violação dos princípios do jornalismo sobre a neutralidade e imparcialidade. Mesmo assim, os nossos comentaristas nos EUA são citados por Donald Trump. Entretanto, no Brasil o número de leitores da Sputnik é maior que o do The New York Times, Deutsche Welle, CNN, HuffPost Brasil, Daily Mail e Forbes, conforme dados da Comscore de março de 2019. Vale notar que na França a Sputnik é a edição on-line estrangeira mais popular. Acreditamos que graças à qualidade do nosso conteúdo nós, ao final, quebraremos os estereótipos negativos sobre a nossa agência.