Por Bruno Lima Rocha
Cientista político, professor de Relações Internacionais e Jornalismo na Unisinos
A rebelião do povo chileno, cujo estopim foi o anúncio do aumento das passagens do metrô, na capital Santiago, tem raízes profundas. O país de Lautaro e da nação Mapuche vive uma dupla mazela como Estado pós-colonial.
A primeira é comum à toda América Latina e se trata da condição dependente, subalterna e periférica. Ao contrário do que arvoram os defensores do neoliberalismo, o Chile não é uma economia complexa. Segue dependendo das exportações de cobre e, sim, está muito privatizado. Essa é a segunda mazela.
Toda a rotina é muito cara, os índices reais de condições de vida são altos e praticamente não há rede de proteção social. A educação superior é paga e não há cobertura universal de saúde. Salários rebaixados e cerca de 40% da população concentrada na capital e região metropolitana.
No Chile, assim como no Brasil, o 1% mais rico fica com 25% da renda nacional. Não há sociedade moderna que sustente isso. Como é possível uma sociedade ser sadia se nela a condição normal é o desencanto, somado com a desesperada luta pela sobrevivência, além da certeza da maioria de que não terá uma velhice tranquila? É uma sociedade “metamorfoseada”, como os EUA, com a singela exceção do poderio da superpotência diante dos diminutos PIB e da posição do Chile no Sistema Internacional.
Após 29 anos de democracia formal, o Chile ainda vive sob a égide da legislação antiterrorista – que deu base ao texto aprovado no Brasil, ainda no governo Dilma Rousseff – o que, na prática, implica em criminalizar a luta social e suas variadas formas de protesto. E tal como era no início do século 20 em nosso continente, a repressão não impede a luta, mas a agudiza. Um regime “democrático”, tutelado pelos Carabineros (polícia militar nacional) e aplastrado pela desigualdade, não pode pretender muito. Não há como governar sem o mínimo de condições materiais imediatas e expectativas de futuro. E isso o neoliberalismo não sabe e não quer assegurar.
Muito do que hoje ocorre está para além das políticas antissociais dos governos Sebastián Piñera (2010-2014 e atual) e Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018). Tal como Mauricio Macri na Argentina, Piñera não prometeu nada diferente do que está fazendo. Era evidente que a vida se tornaria mais difícil, com maior nível repressivo e desespero societário. O problema não é só a direita sendo a direita, mas os governos da Concertación não tocando nas estruturas de Estado deixadas como legado da herança maldita da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), a Dina (polícia política que também operou no narcotráfico) e seus sócios Chicago Boys, da economia neoclássica de Milton Friedman.
O golpe de Estado contra o governo de Salvador Allende (1970-1973) assassinou, além de mais de 11 mil, também um arranjo social que seria minimamente estável, solidário e economicamente regulado. Apesar do heroísmo do médico presidente, era óbvio que nem o Departamento de Estado (os militares entreguistas, chamados de vende patria, em espanhol) e menos ainda a oligarquia chilena iriam permitir uma “transição pacífica” para o socialismo. Ao contrário, promoveram o terrorismo de Estado e tais instituições continuam perpetuando a repressão generalizada.
Diante desse desenho societário e da impotência dos governos de turno (independente se mais à direita ou menos à esquerda), a cada geração de jovens chilenos fica evidente que o modelo não mudaria por “boa vontade” dos controladores das riquezas do país e seus patrões externos. Some-se a revolta social ao racismo anti-indígena atravessado pelo consumo frustrado e a memória histórica do pinochetismo, sempre viva diante da carestia e do desespero para fechar as contas do mês para as famílias de baixa renda.
Podemos comparar o momento do Chile com outros episódios latino-americanos sob democracia oligárquica. Penso no Caracazo venezuelano e no Estallido Social argentino, com a hiperinflação, ao fim do Plano Austral. No Chile, além da explosão popular, também há incidência dos movimentos sociais organizados e as esquerdas mais à esquerda dentro e fora do espectro eleitoral. Se o povo chileno conquistar uma nova Assembleia Constituinte dotada de uma rede de proteção social pública e gratuita, será uma vitória para a terra de Manuel Rodríguez e também para toda a América Latina.