A nova onda migratória de venezuelanos pode chegar a Porto Alegre. A negociação entre a prefeitura e a Casa Civil da Presidência da República, que coordena o chamado processo de interiorização, com intuito de dar novos destinos aos mais de 40 mil que se amontoam nas ruas de Boa Vista (RR), já começou.
Para evitar transtornos, como os enfrentados há alguns anos quando haitianos e senegaleses desembarcaram em massa na Capital, autoridades, entidades e imigrantes que já moram aqui se articulam para proporcionar a quem chegar as condições mínimas de reinício.
— A rede que trabalha com imigração está se articulando e montando uma força-tarefa de prevenção. Não vamos esperar que chegue um contingente para aí fazermos algo — afirma Guilherme Fuhr, titular da Coordenadoria dos Povos Indígenas e Direitos Específicos, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Social e Esporte de Porto Alegre.
Pelo menos 300 venezuelanos já moram na capital gaúcha, sendo que cerca de um terço teria chegado nos últimos seis meses, diante do agravamento da crise humanitária no país de Nicolás Maduro. A maioria tem vindo porque possui familiares ou amigos em Porto Alegre.
Com o avanço do processo de interiorização, que até agora levou em torno de 260 imigrantes de Roraima para São Paulo e Cuiabá, grupos maiores podem desembarcar no Rio Grande do Sul. Um ofício foi enviado pela Casa Civil à prefeitura de Porto Alegre no fim de março e foi retornado com perguntas, até agora não respondidas.
— Queremos acolher, mas precisamos saber o que é preciso oferecer e se haverá contrapartida financeira — afirma Fuhr, citando, por exemplo, que a Capital não tem um albergue público disponível.
Por enquanto, não há confirmação da chegada em massa de venezuelanos, embora alguns boatos circulem no boca a boca. No entanto, de forma individual, chegam imigrantes a Porto Alegre quase todos os dias.
A Associação do Voluntariado e da Solidariedade (Avesol), entidade vinculada à Rede Marista, lançou um projeto dedicado aos venezuelanos na Capital. Denominada Araguaney (nome da árvore-símbolo da Venezuela, que lembra o ipê-amarelo), a iniciativa conta com voluntários para atender a demandas individuais – como orientações jurídicas, ajuda para obter carteira de trabalho, validar diplomas e traduzir documentos – e coletivas – como a articulação de mudanças na legislação que possam beneficiar outros imigrantes e desburocratizar os processos de refúgio.
Além disso, a Avesol busca empresas parceiras para conseguir empregos e conta com outras entidades de assistência a imigrantes.
A economista Lennys Rondón, 50 anos, desembarcou em Porto Alegre no início de dezembro, depois de três dias entre ônibus e aviões. Foi recepcionada pela filha Adriana Becerra, 32 anos, que veio morar com o marido, Fernando Rojas, 38 anos, dois anos antes. Rojas havia obtido, há cerca de três anos, uma bolsa para fazer doutorado na Capital.
– Simplesmente não reconheci minha mãe, de tão magra e envelhecida que ela estava – lembra a bióloga, que não havia visto Lennys desde que deixou a Venezuela.
A mãe veio com a intenção apenas de visitar a filha, mas, encantada com comida na mesa e possibilidade de emprego, decidiu ficar. Ela conta que passou um dia inteiro chorando depois de tomar a decisão, pois deixou em Barinas, a 500 quilômetros da capital Caracas, os pais, ambos hipertensos. Conta que estava inviável comprar o medicamento, que está custando três salários mínimos – o equivalente a 1,3 mil bolívares.
— Meu pai e minha mãe são aposentados e ganham um salário cada. Ou comem, ou se medicam – diz Lennys, acrescentando que, no Brasil, a mesma caixa custa em torno de R$ 5.
Lennys tem tentado se adaptar à nova realidade. Além do idioma, lida com um processo de aceitação.
— Ainda me sinto culpada. Às vezes, choro enquanto mastigo um pão com geleia, porque lembro dos meus familiares que estão lá sem ter o que comer – relata.
Com auxílio do projeto Araguaney, Lennys realizou entrevista em uma multinacional de Guaíba que procurava vendedores com fluência em espanhol. Embora tenha experiência de três décadas em gerenciar empresas e precise enfrentar uma jornada que começa antes de o sol nascer em outra cidade, aceitou a vaga.
— Só quero uma chance de recomeçar.
O clã no Brasil cresce. Em fevereiro, chegou o filho Simon Becerra.
O venezuelano Ithan Cinco chegou em Porto Alegre a 24 de janeiro. Antes, o estudante de 23 anos passou 12 meses morando na cidade fronteiriça de Santa Elena de Uairén, a mais de 850 quilômetros de sua casa, em Puerto Ordaz, para trabalhar em dois empregos e juntar os R$ 2 mil necessários para deixar seu país. Abandonou tudo na tentativa de escapar do desemprego, da censura, da instabilidade política, de uma inflação de 700% e da fome.
— Mesmo se você tiver dinheiro, não adianta. Não tem comida lá — conta o jovem.
Encontrar um grupo no Facebook formado por conterrâneos que moram em Porto Alegre foi decisivo na escolha do destino: desembarcou no aeroporto Salgado Filho com a garantia de um sofá-cama, comida e amigos. Gustavo Chacón, 41 anos, que veio para fazer sua pesquisa de pós-doutorado em 2015 e atualmente atua como professor substituto na UFRGS, iniciou a mobilização nas redes sociais no fim do ano passado. Desde então, tem cadastrado os conterrâneos para saber quais são suas necessidades e buscar ajuda.
— Ainda há muitos em condições de rua, morando em casas com 12 pessoas, sem dinheiro, sem emprego. Cadastrando os que chegam aqui, a gente pode saber do que precisam e buscar ajuda — afirma Chacón. — Enfrentamos outro problema: aqueles que têm vergonha de dizer que são venezuelanos. Fazem autocensura, por vergonha e medo. Então, se escondem e preferem dizer que são de outra nacionalidade latina — acrescenta.
Qual a diferença entre refúgio e visto?
- Refúgio é concedido a pessoas que deixam seu país de origem sob fundado temor de perseguição (por raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas) ou em situações de conflito armado.
- Visto humanitário pode ser aplicado a essas mesmas situações, mas também a vítimas de crises econômicas e ambientais - categorias não contempladas no refúgio.
- Alguns imigrantes ainda pedem vistos temporários, como de turista ou estudante, entre outros, que não dão direito a trabalhar. Depois, tentam as outras categorias.