Doha, Catar – Para o emir do Catar, não há muita coisa que o dinheiro não possa comprar.
Na adolescência, sonhava em se tornar o Boris Becker do mundo árabe, por isso seus pais trouxeram o tenista alemão ao Catar para dar aulas a seu filho. Fanático por esportes, ele mais tarde comprou um time de futebol francês, o Paris St-Germain, que em meados do ano passado adquiriu o passe de um jogador brasileiro por US$263 milhões, preço mais alto já pago por uma transferência na história da modalidade.
E ajudou também a trazer a Copa do Mundo de 2022 para seu país, a um custo estimado de US$200 bilhões, uma grande jogada para uma nação que nunca conseguiu se classificar para o torneio.
Agora, aos 37 anos, o Xeique Tamim bin Hamad al-Thani enfrenta um problema que o dinheiro não pode resolver.
Desde junho, o pequeno Catar é alvo de um boicote punitivo liderado por seus vizinhos, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes. Do dia para a noite, aviões e navios cargueiros que seguiam para o Catar foram forçados a mudar sua rota, laços diplomáticos foram rompidos, e a única fronteira terrestre – um trecho de 64 quilômetros de deserto com a Arábia Saudita –, foi fechada.
Os inimigos do país o acusam de financiar o terrorismo, de se aproximar do Irã e de dar abrigo a dissidentes fugitivos. Ambos detestam a Al-Jazeera, a rede de notícias por satélite altamente influente do Catar. E embora poucos o digam abertamente, parece que têm a intenção de destituir o jovem líder, Tamim, de seu trono.
Tamim atribui a animosidade à inveja.
"Não gostam de nossa independência. Eles a veem como uma ameaça", disse ele em uma entrevista em Nova York em setembro.
O boicote acabou sendo o primeiro golpe de uma ampla campanha do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, que chocou o Oriente Médio. Obcecado por reformar seu país retrógrado e por minar as ambições regionais do seu inimigo, o Irã, o jovem e agressivo saudita prendeu centenas de rivais em um hotel cinco estrelas em Riad, coagiu o primeiro-ministro do Líbano a tentar um ataque (fracassado) contra o Irã e intensificou sua guerra devastadora no Iêmen.
O príncipe saudita moldou a abordagem da administração Trump no Oriente Médio, e seus esforços podem ter consequências amplas, com potencial para elevar os preços da energia, prejudicando os esforços de paz entre israelenses e palestinos e aumentando as chances de guerra com o Irã.
Os súditos do Catar, da Arábia Saudita e dos Emirados são originais das mesmas tribos nômades, compartilham a mesma religião e comem a mesma comida. Então a disputa lembra mais uma discussão entre primos, neste caso munidos com bilhões de dólares e aviões de guerra americanos.
A crise tomou um rumo alarmante quando os Emirados acusaram caças catarenses de ameaçar dois de seus aviões de passageiros que atravessavam o golfo. Mentira, disse o Catar, que contra-atacou acusando aviões de guerra dos Emirados de invadir duas vezes seu espaço aéreo.
A descoberta do gás natural
Durante grande parte do século XX, o Catar era um recanto estéril do Golfo Pérsico onde piratas se escondiam. Seu povo era extremamente pobre e, em geral, mergulhava em busca de pérolas no verão e pastoreava camelos no inverno.
Então, em 1971, o Catar descobriu gás natural.
O emir, pai de Tamim, Xeique Hamad bin Khalifa al-Thani, apostou alto. Investiu US$20 bilhões em uma grande fábrica de liquefação em Ras Laffan, na costa setentrional, com a ajuda da gigante Exxon Mobil. A empresa na época era dirigida por Rex Tillerson, o atual Secretário de Estado dos EUA.
A aposta compensou de modo espetacular: o consumo de gás cresceu, e até 2010 o Catar era responsável por 30 por cento do mercado global.
Assim, seus 300 mil cidadãos acabaram ficando muito ricos rapidamente. Seu rendimento médio de US$125 mil é o maior do mundo, mais do que o dobro do da Arábia Saudita ou dos Estados Unidos.
Mas a ostentação do Catar é controversa entre seus vizinhos. Em sua busca por influência global, os al-Thanis adotaram políticas hipócritas, às vezes contraditórias – pregando as virtudes da paz, da educação e dos direitos das mulheres ao mesmo tempo em que financiavam extremistas islâmicos na Síria e hospedavam a maior base militar americana no Oriente Médio.
Para a Arábia Saudita e os Emirados – e o Barein e o Egito, que se juntaram ao boicote –, o Catar é uma nação de cínicos intrometidos, intoxicados por sua própria riqueza, e que precisam ser postos em seu devido lugar.
No centro da disputa estão três membros caprichosos e briguentos de famílias reais.
Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita, de 32 anos, lidera uma campanha para renovar e revigorar sua sociedade, inclusive com propostas bizarras como a de uma cidade de US$500 bilhões na costa do Mar Vermelho controlada por robôs. Ele tem um firme aliado no Xeique Mohammed bin Zayed al-Nahyan, 56 anos, o beligerante príncipe herdeiro dos Emirados, que montou um exército formidável e compartilha com o vizinho a hostilidade profunda em relação ao Irã.
Os dois príncipes se uniram contra Tamim.
Foi a Primavera Árabe em 2011 que verdadeiramente destacou o Catar. Quando movimentos populares se levantaram contra a ordem estabelecida no Oriente Médio, os sauditas e os emiradenses ficaram alarmados com a força crescente dos políticos islamitas, como a Irmandade Muçulmana do Egito, que, segundo temiam, poderiam espalhar o caos em seus próprios países.
O Catar apoiou os islamitas.
O emir podia se dar ao luxo de ser ousado; afinal, o Catar contava com uma riqueza imensa, uma base aérea americana enorme a poucos quilômetros do palácio e nenhuma oposição doméstica.
"Havia o sentimento de que podiam fazer qualquer coisa que quisessem, bastava empregar dinheiro suficiente para resolver o problema", disse Kristian Coates Ulrichsen, autor de "Qatar and the Arab Spring".
Mas em Riad e Abu Dhabi, a frustração ia surgindo.
As origens de uma disputa
A crise que desencadeou o maior confronto do golfo em décadas começou com uma série de eventos aleatórios e, aparentemente, sem relação entre si, envolvendo notícias falsas e o novo presidente dos EUA, Donald Trump.
Em abril, um jatinho privado do Catar carregando US$300 milhões pousou no Iraque para libertar 26 caçadores de falcões catarianos, incluindo nove nobres, que haviam sido sequestrados por uma milícia pró-iraniana. Ninguém sabe ao certo quem foram os beneficiários, mas os críticos de Tamim usaram o episódio como prova de sua vontade imprudente de colaborar com extremistas.
Antes mesmo de Trump desembarcar na Arábia Saudita, em maio, a primeira viagem ao exterior de sua presidência, ele parecia estar firmemente ao lado dos sauditas.
Ele se reuniu com Tamim, e o líder do Catar achou que tudo corria bem, mas, dois dias depois, em Doha, o emir acordou com notícias perturbadoras: alguém havia hackeado a Agência de Notícias do Qatar, que é estatal, e postado em seu site um relatório do emir chamando o Irã de "superpotência", louvando o Hamas e especulando que Trump poderia não durar muito tempo no poder.
O relatório era pura ficção, mas os vizinhos o trataram como um fato. Minutos depois, comentaristas nos canais de televisão dos Emirados e da Arábia Saudita falavam sobre a perfídia do Catar e faziam denúncias veementes. Tamim reuniu seu ministério às pressas e retirou do ar o relatório.
Mas, nas semanas seguintes, agências de notícias dos dois vizinhos aumentaram seus ataques, acusando o Catar de ameaçar a estabilidade do Golfo; vários think tanks conservadores em Washington se juntaram ao coro. Então, no dia 5 de junho, sem aviso, o boicote dos quatro países se abateu sobre o país.
Trump queria muito assumir a responsabilidade.
"Durante a minha recente viagem ao Oriente Médio, afirmei que não pode haver financiamento de ideologias radicais. Os líderes apontaram para o Catar – olha lá!", tuitou ele no dia seguinte.
Funcionários da inteligência dos EUA determinaram que a divulgação da notícia falsa havia sido orquestrada pelos Emirados, de acordo com o que um deles disse ao New York Times.
"Tudo leva a crer que a origem é Abu Dhabi. Não há nenhuma dúvida", a sede do príncipe Mohammed bin Zayed, disse ele, citando reuniões de funcionários da inteligência. Além disso, afirmou, o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, tinha conhecimento prévio da trama e havia dado sua aprovação.
Yousef al-Otaiba, embaixador dos Emirados em Washington, disse que seu país "negava categoricamente" qualquer envolvimento no acontecido.
O boicote causou alguns problemas para o Catar. Com sua única fronteira terrestre fechada, seus navios impedidos de passar pelos portos dos Emirados e seus aviões impedidos de sobrevoar o espaço aéreo vizinho, os custos de importação subiram. A bolsa perdeu um quinto do seu valor no ano passado.
Mas no geral, o dia a dia em Doha está praticamente inalterado. Vinhos caros são servidos em hotéis cinco estrelas, o trabalho de construção de um novo sistema de metrô continua e um impressionante Museu Nacional está prestes a se tornar a mais recente maravilha arquitetônica da cidade.
O Banco Central do Catar diz que tem um caixa de guerra de US$340 bilhões para ajudar a contornar a crise.
A guerra fria no deserto
Para Tamim, o objetivo de seus vizinhos é derrubá-lo do poder. Na entrevista ao Times, citou como precedente a tentativa de golpe contra seu pai em 1996, patrocinado pela Arábia Saudita.
Seus medos podem ser justificados. Segundo duas autoridades americanas, nos primeiros dias do boicote, líderes da Arábia Saudita e dos Emirados aventaram uma possível ação militar contra o Catar. Os detalhes não eram claros, mas a conversa foi considerada suficientemente grave para que Tillerson pessoalmente aconselhasse os líderes de ambos os países contra uma ação precipitada. Trump mais tarde repetiu esse conselho em uma ligação a líderes sauditas.
Yousef al-Otaiba, o embaixador dos Emirados em Washington, negou em uma entrevista que houvesse um plano militar. "Nunca planejamos nada isso", disse ele.
Por Declan Walsh