Milhares de anos depois que os cidadãos de Troia descobriram as complicações apresentadas por esculturas equinas descomunais, os residentes atuais de Milão se viram novamente enredados em um debate sobre como tirar o máximo proveito de um cavalo presenteado, colossal corcel de bronze doado por um grupo de doadores norte-americanos.
Inspirados pela estátua incompleta projetada por Leonardo da Vinci (o molde de argila foi destruído em 1499), com 7,3 metros de altura, o garanhão de 15 toneladas chegou a Milão em 1999, fruto de uma fundição de Beacon, Nova York, e foi colocada em uma praça no hipódromo da cidade, bairro de San Siro.
Para seus admiradores, colocar a escultura em um local onde recebe poucos visitantes além dos apostadores, cujo interesse em cavalos estáticos é compreensivelmente limitado, seria o equivalente a jogá-la em qualquer canto.
Agora, com a abertura da Exposição Mundial em Milão que acontecerá em menos de 15 meses, aumentaram os pedidos para que o cavalo fosse movido para uma posição mais visível, e até mesmo torná-la um símbolo da cidade durante a feira, que as autoridades esperam que atraia milhões de visitantes à capital da Lombardia.
O cavalo de bronze seria um marco, um monumento cultural similar à Estátua da Liberdade, disse Carlo Orlandini, presidente do Comitê pelo Grande Cavalo, grupo de voluntários que há anos defende a transferência do corcel a um local mais apropriado.
- Nós precisamos convencer as pessoas de que a solução atual não é apropriada e não corresponde ao espírito com que o presente foi dado, acrescentou Orlandini, cujo grupo estimula o debate público sobre a estátua, noticiada nas últimas semanas pelo jornal Corriere della Sera.
Concebida há quase quatro décadas por um piloto de avião aposentado, Charles C. Dent, de Allentown, Pensilvânia, como um substituto contemporâneo do original de Leonardo, a intenção da estátua de bronze era ser um presente do povo norte-americano ao povo italiano "para homenagear Leonardo da Vinci e o Renascimento italiano", explica uma placa no pedestal.
Antes de morrer em 1994, Dent envolveu dezenas de doadores para arrecadar mais de US$ 6,5 milhões para fundir o cavalo. Em 1999, ele foi despachado para Milão e inaugurado com muita pompa no hipódromo de San Siro, longe do centro da cidade. Ali, no entender de Orlandini, ele terminou sendo abandonado.
Um parque cultural e educativo que a Prefeitura prometera construir no hipódromo como parte do acordo de doação nunca se materializou, o que foi uma decepção, disse Peter C. Dent, sobrinho de Charles Dent, que participou da diretoria de várias instituições que cuidam dos "interesses do cavalo".
Ao longo dos anos, as tentativas de mudar o cavalo encontraram uma série de obstáculos, incluindo um ruidoso comitê de moradores de San Siro interessados na permanência da estátua. A Prefeitura tem feito corpo mole porque achar um local alternativo se revelou um enigma municipal.
Agora os preparativos municipais para a Exposição Mundial, cuja abertura está marcada para maio de 2015, deram novo ânimo para os defensores do corcel no sentido de que ele encontre uma nova casa, ainda que somente para os seis meses de duração da feira.
- Eu acho que devemos conversar a respeito, afirmou Giangiacomo Schiavi, subeditor do Corriere della Sera, que há pouco tempo abriu o debate no jornal sobre a mudança da estátua, que para ele seria vista como um símbolo de boas-vindas de Milão por todos os visitantes.
Ele disse que exibir o cavalo também serviria para destacar os laços pouco explorados de Leonardo com Milão. Afinal, Leonardo morou na cidade durante quase 20 anos, deixando a obra-prima A Última Ceia como o testemunho mais conhecido de sua estadia. O cavalo inacabado pretendia homenagear um poderoso duque milanês do século XV, Francesco Sforza. Se os soldados franceses que ocuparam a cidade não tivessem usado o molde de argila para a prática do tiro em 1499, ele teria sido o maior cavalo de bronze de todos os tempos.
A publicidade relacionada à mudança do sucessor moderno - o que por si só já não seria fácil - chamaria novamente a atenção para esse vínculo histórico, ainda que a história de Charles C. Dent e seu sonho de ressuscitar o cavalo perdido de Leonardo representem um símbolo da superação do impossível, disse Schiavi.
Porém, o debate sobre a linhagem confusa do cavalo aborreceu críticos, descritos como puristas por Orlandini, os quais afirmam que os vínculos do cavalo norte-americano com a obra perdida de Leonardo são, no máximo, questionáveis.
Quando Charles Dent se envolveu na saga para reconstruir o cavalo de Leonardo, ele criou um modelo baseado nos desenhos e escritos existentes do artista. Quando o modelo de argila foi aumentado, no entanto, viram-se distorções anatômicas e de proporção, assim, em 1996, os apoiadores convocaram a escultora norte-americana Nina Akamu para completar o projeto. Ela começou do zero e sua versão, ainda que inspirada em Leonardo, não pretende ser uma recriação de sua escultura, escreveu a escultora.
- Nós a tratamos e tentamos falar a seu respeito pelo que ela é, disse Joseph Antenucci Becherer, vice-presidente e curador-chefe do Programa de Esculturas do Frederik Meijer Gardens & Sculpture Park, Grand Rapids, Michigan, que tem sua própria versão da estátua. - É uma obra de arte original de Nina Akamu, embora seja difícil transmitir isso às pessoas. Ele chamou o cavalo de um monumento à criatividade.
Críticos do cavalo não perdem tempo em ressaltar sua estética moderna, considerada posterior a Leonardo. - Com todo o respeito, o cavalo de Nina nunca teria sido aceito porque é uma obra contemporânea e meio banal, afirmou Marco Castelli, empresário aposentado e promotor da herança artística que escreveu um livro acerca do cavalo.
Ainda não existe uma decisão oficial sobre o futuro da estátua. As autoridades milanesas parecem abertas a um novo local com a chegada da exposição mundial. Todavia, muito depende de o comitê do Grande Cavalo pagar a conta do transporte, estimada, em números conservadores, em aproximadamente US$ 412 mil.
A logística complicada de deslocar o cavalo inteiro envolveria vários departamentos municipais, pois poderia envolver o corte de cabos de bonde e elétricos ao longo da rota, além de garantir que as ruas poderiam suportar o peso.
De acordo com a Prefeitura, um possível local alternativo seria diante do castelo Sforza, área em que o centro de informações da feira está sendo construído. Vereadores, no entanto, afirmam que transportar o cavalo só por seis meses é um desperdício de recursos e dinheiro em um momento em que a cidade deveria se concentrar em outras prioridades.
- Seria melhor manter o cavalo no hipódromo. E mandar os visitantes da feira até lá, argumentou Enrico Fedrighini, vereador milanês.
Mudança
Milão discute a transferência de estátua baseada em projeto de Leonardo da Vinci
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