Mesmo entre os afegãos, que geralmente temem estrangeiros, a etnia tajik, do Vale do Panjshir, é um grupo especialmente desconfiado. Portanto, eles têm a sorte de terem sido abençoados com a coisa mais parecida com uma placa natural de "afaste-se": um desfiladeiro profundo e estreito na boca do vale, feito sob medida para tocaias e bloqueios.
Já faz muito tempo desde que eles precisaram recorrer a esse tipo de estratégia. Porém, caso alguém venha a pensar que o Panjshir, que liderou a resistência ao Talibã nos anos 90 e ao domínio soviético na década anterior, baixou a guarda, a polícia do vale está construindo um novo ponto de inspeção reforçado na estrada que atravessa o desfiladeiro.
Muhammad Rafiq, o policial de barbas grisalhas que toma conta do posto avançado, resumiu de forma sucinta a razão:
- Qualquer pessoa pode ser do Talibã. Podemos combater o talibã se eles quiserem voltar. Todos sabemos das possibilidades no Afeganistão - afirmou.
Depois de anos de relativa paz e praticamente nenhum ataque do Talibã, as preocupações estão ressurgindo no Vale do Panjshir, 97 quilômetros de desfiladeiros sinuosos recortados das Montanhas Hindu Kush por um rio gélido e rochoso. As forças militares lideradas pelos EUA devem deixar o Afeganistão até o fim do ano, uma eleição nacional está prestes a acontecer, e o presidente Hamid Karzai parece estar disposto a passar os últimos meses de mandato concentrado em negociações de paz com o Talibã, a quem ele costuma chamar de "irmãos".
Ninguém por aqui chama os talibãs de irmãos. Pelo contrário, eles falam sobre se prepararem no caso do Exército Talibã e a polícia deixarem de agir depois que os americanos forem embora. Para muita gente em Panjshir, a melhor notícia vinda de Cabul nos últimos tempos é que o Talibã não parece interessado em negociar.
- Não devemos estender a mão a um talibã. Nós devemos aniquilá-lo - declarou Shamshullah, de 56 anos, um aldeão do vilarejo que, como muitos afegãos, usa apenas um nome e já combateu as tropas soviéticas no vale.
Famosos combatentes da resistência, os panjshiris também tiveram um papel fundamental nos eventos subsequentes aos ataques terroristas de 11 de setembro e a batalha para derrubar o governo afegão. Os primeiros funcionários da CIA a entrarem no Afeganistão voaram até Panjshir com três milhões de dólares em dinheiro para comprar os membros da velha Aliança do Norte e garantir que pudessem atacar o Talibã, de acordo com "First In" (Os primeiros a entrarem, em tradução livre), um livro escrito por Gary Schroen, que comandou a primeira equipe da CIA no Afeganistão.
Os panjshiris, como é conhecido o povo de etnia tajiks do vale, dominaram as primeiras ordens pós-Talibã na região. Entretanto, logo eles perderam parte de sua influência depois que os americanos incentivaram a entrada de mais tecnocratas no governo e Karzai começou a tentar aplacar os ânimos dos pashtun, o maior grupo étnico do país, onde o talibã encontra a maior parte de seu apoio.
Mencione Karzai, que é pashtun, que está no vale atualmente, é considerado talibã, assim como a maioria dos pashtun.
- Eles são todos talibãs. Não queremos que eles venham para cá - afirmou Abbas Zahiri, de 19 anos, que prepara kebab em um restaurante em Bazarak, a capital da província.
As preocupações com o ressurgimento dos talibãs não se limitam a Panjshir. Em outras áreas do norte e do oeste do Afeganistão que tentaram resistir à conquista talibã há quase 20 anos, e quase sempre falhou, velhos comandantes mujahedeen começam a falar sobre rearmar suas milícias. Eles temem que as eleições possam ser fraudulentas como a última, e o resultado possa ser o governo fragmentado e o retorno do Talibã.
As preocupações cresceram ainda mais depois que Karzai se negou a assinar um acordo de segurança de longo prazo que manteria as forças de segurança lideradas pelos EUA no Afeganistão depois de 2014, e os panjshiris podem entrar em ação. Especialistas ocidentais em segurança e autoridades de defesa sêniores afegãs dizem que é provável que os panjshiris estejam trazendo armas pelo vale.
Ainda assim, a conversa incessante em Panjshir sobre armas, guerra e traição pode parecer um pouco confusa. O número de ataques talibãs ocorridos na região na última década pode ser contado em apenas uma mão e os estrangeiros se sentem seguros o bastante para fazerem passeios vindos de Cabul, para fazer piquenique ou caminhadas.
Enquanto isso, em Cabul, existem inúmeros cartazes com fotos do filho mais famoso de Panjshir, Ahmad Shah Massoud, que lutou contra os soviéticos nos anos 1980 e liderou a Aliança do Norte contra o Talibã uma década depois. Ele foi morto pela al-Qaeda no dia 9 de setembro de 2001, e o aniversário de sua morte é um feriado nacional.
Os antigos subordinados de Massoud garantiram que os panjshiris, que representam menos de um milésimo de um por cento da população de 32 milhões de pessoas do Afeganistão, ainda sejam fortemente representados junto à elite afegã. O principal candidato da oposição, Abdullah Abdullah, e um punhado de candidatos a vice são panjshiris. Muhammad Qasim Fahim, o primeiro vice-presidente, e o ministro da Defesa, Bismullah Khan, vêm de Panjshir, assim como o chefe de polícia de Cabul e uma série de outras importantes autoridades civis e policiais.
Panjshir também é a única província onde agentes uniformizados da Direção Nacional de Segurança, a principal agência de inteligência afegã, estão basicamente na patrulha rodoviária. É fácil reconhecê-los em seus pontos de inspeção, carregando rifles americanos M4 e coletes de proteção, além de cruzarem o vale dirigindo picapes Toyota de última geração repletas de armas.
- Não é nenhum segredo que muitas pessoas influentes vêm de Panjshir. Os panjshiris não têm medo de falar. Eles precisam de proteção - afirmou Abdul Jabbar Naeemi, vice-governador da província de Panjshir, quando questionado sobre por que alguns dos soldados mais bem treinados do Afeganistão estavam atuando na patrulha rodoviária.
Não há dúvidas de que eles falam o que pensam. Comparados aos outros afegãos, que evitam falar diretamente dos problemas, os panjshiris são como os nova-iorquinos - até mesmo as crianças são diretas e sem papas nas línguas.
- Você, chega de tirar fotos! - gritou um menino ao fotógrafo visitante. Um segundo antes, o menino estava posando para fotos ao lado de um velho tanque soviético que enferrujava no gramado ao lado de sua escola , mas agora ele já tinha cansado, e decidiu que o fotógrafo também tinha que parar.
- Você já gastou tempo demais - afirmou, enquanto ia embora.
Além disso, não se podem esquecer as histórias de guerra. As histórias reais sobre as conquistas dos mujahedeen panjshiri são dramáticas o bastante, há quem pense, em vista de seu histórico massivo de vitórias e das poucas derrotas na luta contra soviéticos e talibãs ao longo de anos de sacrifício e dureza. Todavia, muitas das vitórias parecem passar de contos lendários a pura fantasia quando são passadas adiante.
Shamshullah, o ancião da vila, por exemplo, contou da noite em que ele e oito outros panjshiris venceram um batalhão soviético nos anos 1980.
Mais de 400 soviéticos foram mortos, afirmou, e apenas um afegão foi abatido.
Os panjshiris também dirão que foram eles quem tiraram o Talibã do poder. Isso certamente é verdade, até certo ponto, mas é melhor não dar a entender que eles precisaram da ajuda do Ocidente para fazer isso.
- Os americanos precisaram de nós! Sem Panjshir, Cabul ainda estaria nas mãos dos talibãs, mas isso não vai acontecer novamente - afirmou Zahiri, que trabalha na lanchonete de kebab, e que nem tem idade para se lembrar.
Panjshir
Com medo do passado, vale afegão nunca baixa a guarda
Após anos de relativa paz e praticamente nenhum ataque talibã, preocupações ressurgem na região
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