Ao longo dos séculos, esta ilha montanhosa localizada no estreito que separa o Japão da Coreia testemunhou alguns dos episódios mais violentos entre esses dois antigos rivais asiáticos, servindo como esconderijo para piratas, base avançada para invasores e linha de frente desesperada contra ataques. Porém, nos últimos anos esse histórico problemático parecia perdido nas brumas do tempo no sonolento vilarejo de Kozuna, onde os moradores se reúnem há gerações num templo minúsculo diante de uma deidade budista da compaixão com séculos de idade.
Ao menos foi assim até outubro, quando descobriram que alguém invadira o templo sem vigias à noite para roubar a estátua de bronze, que teria sido feita na Coreia. Os moradores suspiraram de alívio em janeiro, quando ela foi recuperada em segurança pela polícia de Daejeon, Coreia do Sul.
Foi aí então que o caso sofreu uma reviravolta inesperada. Um tribunal sul-coreano impediu a repatriação da estátua alegando que esta pode ter sido roubada da Coreia séculos atrás por piratas japoneses. Indignados pela afirmativa que consideram sem fundamento, os ilhéus retaliaram cancelando um desfile de verão que atrai turistas sul-coreanos com a encenação colorida de uma processão de emissários coreanos que visitaram a ilha durante uma rara era de paz.
O impasse em relação a uma estátua pequena (45,7 centímetros de altura) dá um bom exemplo de como as discordâncias históricas continuam a dividir Japão e Coreia do Sul, duas nações que têm mais em comum culturalmente do que ousariam admitir.
Ainda que seja um caso menor, a briga expõe os sentimentos de ressentimento e raiva vistos em disputas mais proeminentes na esteira da colonização brutal do Japão na Coreia no século XX. Uma das controvérsias, ligadas ao fato de coreanas e outras mulheres terem sido forçadas a ter relações sexuais com soldados japoneses durante a II Guerra Mundial, se incendiou novamente depois que o prefeito de Osaka, Japão, sugeriu que as mulheres desempenhavam um papel necessário ao fornecer alívio a homens que estavam arriscando as vidas.
- É incrível como algumas pessoas podem guardar rancor por tanto tempo, até mesmo séculos - disse Sekko Tanaka, abade aposentado de um antigo templo zen situado à sombra de fortificações de pedra usadas pelos senhores da guerra japoneses para invadir a península coreana no século XVI - Agora que a situação política está mudando, as antigas vítimas acham que está na hora de dar o troco.
Mais de uma vez Tsushima foi pega nessa história turbulenta. Conhecida como Daemado em coreano, esta ilha comprida e estreita fica a 144,8 quilômetros do Japão, mas a apenas 48,3 quilômetros da Coreia do Sul. Seus 33 mil residentes, a maioria deles composta por idosos, têm na pesca, extração de madeira e, mais recentemente, nos turistas coreanos, o ganha-pão.
A localização da ilha fez líderes coreanos do passado argumentarem que mais adequadamente ela pertenceria à Coreia. Porém, o atual governo de Seul - que controla uma cadeia de ilhotas separadas reivindicadas pelo Japão - não faz qualquer reivindicação oficial por Tsushima.
Tsushima, porém, também demonstra como as nações na região, embora afastadas pela história, estão sendo unidas pelas forças econômicas. A ilha vem se tornando mais e mais dependente dos agora prósperos sul-coreanos, que vêm para cá numa balsa de alta velocidade de Busan, Coreia do Sul. A viagem demora uma hora.
Neste ano, Tsushima espera cerca de 200 mil turistas sul-coreanos, ultrapassando pela primeira vez o número de visitantes do Japão. Placas em coreano se tornaram tão comuns quanto as carreiras de sul-coreanos de botas para caminhada que buscam a ilha em função da paisagem escarpada e do sashimi fresco.
Muitos ilhéus recebem os sul-coreanos como a salvação do sombrio declínio econômico a atingir boa parte do Japão rural, em especial depois que minguaram os gastos de Tóquio com obras públicas. Yukihiro Yamada, 50 anos, pescador de cavala que transformou a sede de uma construtora em apuros em restaurante, afirma servir 160 turistas sul-coreanos por dia, e o dobro disso nos fins de semana.
- Nós costumávamos ver os sul-coreanos com desprezo, mas sem eles, Tsushima definharia - disse Yamada.
Como muitos moradores de Tsushima, Yamada disse que embora sentisse raiva pela recusa na devolução da estátua budista, ele desejava encerrar a disputa para proteger o turismo. O pescador disse que ele e outros negociantes defenderam que a encenação da chegada dos emissários coreanos - envolvendo 400 participantes japoneses e sul-coreanos em trajes de época carregando bandeiras e espadas - seja retomado no ano que vem.
Para muitos sul-coreanos, a propriedade da estátua é clara. De acordo com eles, ela foi roubada por piratas japoneses que usavam Tsushima como baluarte nos ataques à costa coreana - somente um exemplo, em seu entender, de como o Japão saqueou repetidas vezes a Coreia e sua cultura. Os sul-coreanos baseiam a alegação num documento encontrado dentro da estátua oca segundo o qual ela foi feita em 1330 no templo de Buseok, no que agora seria a Coreia do Sul, onde esta deveria ser "consagrada para sempre".
- Não existe dúvida de que o templo de Buseok é o dono da estátua - afirmou o venerando Wonwoo, monge do santuário, em Seosan, Coreia do Sul.
Todavia, Tanaka, o abade aposentado, cujo templo supervisiona a capela que abrigava a imagem, alegou não haver provas do envolvimento de piratas ou de que a estátua fosse roubada. Para ele, a peça provavelmente foi vendida ou dada aos negociantes de Kozuna séculos atrás.
Ainda segundo ele, os moradores locais desconheciam o valor da estátua até ficarem sabendo que cinco sul-coreanos foram presos acusados de roubá-la e vendê-la, em conjunto com uma imagem subtraída de outra igreja de Tsushima, por mais de US$ 1 milhão cada.
Após a prisão dos homens em janeiro, monges do templo de Buseok acionaram a justiça para impedir a devolução da obra. Em fevereiro, um juiz de Daejeon deu uma ordem temporária impedindo sua devolução até que os dois santuários apresentassem provas em data ainda não determinada.
Para o prefeito de Tsushima, Yasunari Takarabe, recuperar a estátua se tornou um novo fardo histórico para a ilha.
- Nossos ancestrais sofreram o mesmo martírio entre Japão e Coreia durante séculos. Sinto que estão olhando para nós agora e rindo.