Kyonku, Mianmar - Às vezes chamado de Mikhail Gorbachev de Mianmar, e antes um fiel seguidor de uma das ditaduras militares mais brutais da história, ele vem desconstruindo alguns de seus piores legados - libertando prisioneiros políticos, removendo parcialmente os arreios da imprensa e permitindo que a oprimida oposição concorra às eleições em abril.
Por que Thein Sein, o presidente de Mianmar, evoluiu de braço direito de um temido ditador a defensor da mudança democrática é um mistério tão grande quanto por que os líderes da antiga junta militar lhe permitiram fazer isso. Porém, em entrevistas com aqueles que viram a ascensão de Thein Sein no exército, incluindo dois conselheiros, e uma visita à sua cidade natal, começou a aparecer a imagem de um homem que sempre foi um pouco diferente de seus colegas generais.
Aos 66 anos, Thein é magro, estudioso e considerado mais suave - ou no mínimo menos cruel - do que os outros membros da junta que assumiu o poder em 1988, após um levante popular. Ele é amplamente visto como livre da corrupção que manchou tantos daqueles generais; mesmo antigos críticos apontaram, com aprovação, que sua esposa e filhas evitavam as ostentações de riqueza que renderam tanta animosidade à família de seu predecessor, num dos países mais pobres da Ásia.
Em entrevista após entrevista, tanto críticos quanto antigos apoiadores louvaram sua sinceridade e humildade.
Um antigo conselheiro e redator de discursos presidenciais, Nay Win Maung, ofereceu sua avaliação no ano passado:
- Não ambicioso, não decisivo, não carismático, mas muito sincero.
Segundo Aung San Suu Kyi, líder do movimento democrático do país, foi a sinceridade de Thein Sein a respeito da reforma que a persuadiu a voltar à política, no ano passado. Aquela decisão foi um ponto decisivo para o presidente, não só lhe garantindo apoio em casa, mas também o aproximando dos Estados Unidos - o campeão em sanções internacionais.
Alguns dias após a declaração de Suu Kyi, a Secretária de Estado Hillary Rodham Clinton voou a Mianmar, tornando-se a mais alta autoridade americana a visitar o país em meio século. Thein Sein vem se tornando alguém que a administração irá procurar enquanto tenta firmar seu poder na Ásia - e supervisionar a ascensão da China.
Thein Sein continuou apoiando publicamente o processo de reforma, apesar da vitória quase total da oposição nas eleições parlamentares, dizendo que o voto "foi conduzido de forma muito bem sucedida". Embora relativamente poucos cargos tenham sido preenchidos nas eleições, a exibição de comando da oposição, somada à cadeira obtida por Suu Kyi, pode ser percebida como uma ameaça ao partido governante - que enfrentará eleições gerais em 2015.
Os elogios iniciais de antigos críticos não significam que eles estejam totalmente satisfeitos com as mudanças realizadas por Thein Sein. Embora muitos prisioneiros políticos tenham sido libertados, ativistas calculam que centenas continuem presos. E o passado do presidente também não foi esquecido: ele passou toda sua vida adulta, até o ano passado, num exército conhecido pela crueldade.
Ele era o primeiro-ministro interino durante a chamada Revolução Açafrão em 2007, protesto liderado por monges budistas e violentamente reprimido. E ele era o chefe de um comando durante a repressão da manifestação de 1988, que deixou centenas de mortos.
Mas o "Irrawaddy", publicação administrada por exilados na Tailândia, apontou recentemente uma distinção - relatando que sua unidade, em 1988, havia libertado os ativistas democráticos ou os entregado às autoridades locais, talvez poupando suas vidas.
Khuensai Jaiyen, editor de uma organização que divulga notícias sobre um dos maiores grupos minoritários do país, resumiu as opiniões relativamente boas sobre o presidente, que já comandou tropas em sua região.
- Se perguntar ao povo daqui de qual comandante eles mais gostavam, ele venceria fácil - garantiu Khuensai por telefone. - Ou, para ser mais preciso, ele era o comandante que as pessoas menos odiavam.
Como grande parte do passado de Thein Sein, a história do "Irrawaddy" é difícil de confirmar independentemente. A imprensa mais livre em Mianmar está longe de ser realmente livre. E existem poucos relatórios detalhados sobre o homem que se tornou presidente em março passado, em eleições que trouxeram um governo nominalmente civil e que muitos condenam como uma farsa (Thein Sein e os outros ex-generais que hoje governam o país simplesmente abandonaram seus títulos militares antes de assumir o poder).
Um conselheiro do presidente não respondeu a perguntas enviadas por e-mail sobre o histórico de Thein Sein e suas motivações para conduzir as reformas. Com tão pouca informação, é impossível dizer o que motiva o presidente enquanto ele arremessa o país - pelo menos por enquanto - na direção de uma sociedade mais aberta.
Um catalisador parece ter sido o ciclone Nargis.
A tempestade, há quatro anos, foi o pior desastre natural da história de Mianmar, matando mais de 130 mil pessoas e transformando os campos férteis da infância de Thein Sein numa paisagem de vilas destruídas e corpos boiando nos rios.
Na ocasião, Thein Sein era o líder de esforços emergenciais da junta militar. Enquanto sobrevoava o devastado Delta do Irrawaddy num helicóptero, porém, ele percebeu como seu país estava incrivelmente despreparado para a catástrofe.
O ciclone se tornou um "gatilho mental", explicou Tin Maung Thann, chefe de uma organização de pesquisa de Yangon que fornece consultoria política ao presidente.
- Aquilo o fez enxergar as limitações do antigo regime.
Como líder do comitê de prontidão do país, Thein Sein deveria ser parcialmente responsabilizado pelos fracassos do governo. Críticos foram severos sobre a decisão de recusar ajuda estrangeira na distribuição de comida e outros auxílios, medida que desacelerou a reação enquanto o mundo era cativado por imagens de aldeões desesperados por ajuda.
Mas analistas afirmam que Thein Sein pelo menos se fez acessível ao seu povo, ao contrário de seus colegas generais, que nos dias imediatamente após o desastre permaneceram isolados na capital, Naypyidaw, intocada pelo ciclone.
Na remota vila de Kyonku, onde nasceu, Thein Sein e sua família são conhecidos por serem um pouco diferentes (a viagem até a vila evidenciou as recentes liberdades da mídia, bem como seus limites: inspetores do governo recebiam os repórteres e monitoravam entrevistas).
Como a maioria dos grandes generais de Mianmar, Thein Sein cresceu na pobreza.
Mais novo de três irmãos, ele nasceu numa pequena cabana de madeira na estrada que corta o centro da cidade - localizada a oito horas de carro ao sul de Yangon, a maior cidade do país.
Seus pais não possuíam terras, e seu pai, Maung Phyo, ganhava a vida em parte tecendo esteiras de bambu, contou Kyaw Soe, criada na casa em frente à do presidente.
Mas o pai de Thein Sein era um ex-monge budista, descrito pelos aldeões como excepcionalmente letrado para a época.
- A principal razão de seu sucesso foi seu pai - disse Kyaw Soe. - Ele era um ótimo professor e respeitava os valores morais.
Segundo Kyaw Soe, a falta de desenvolvimento na vila representa, hoje, uma prova da honestidade do presidente; ele não favoreceu Kyonku desde que assumiu o poder, há um ano. A vila continua sem água corrente ou ruas pavimentadas. Visitantes são advertidos a não viajar após o escurecer nas estradas de terra que ligam Kyonku ao mundo exterior, devido ao risco de colidir com os elefantes que habitam as montanhas.
A falta de ostentação do presidente surtiu uma impressão favorável sobre o cidadão comum, que testemunhou exibições cada vez mais descaradas de riqueza por antigos líderes militares depois que a junta vendeu muitos dos ativos do país a amigos e aliados no ano anterior à entrega do poder, em 2011. Alguns analistas especulam que a prosperidade financeira pode explicar, em parte, o consentimento dos ex-líderes em relação às reformas do presidente.
Com Thein Sein prestes a iniciar seu segundo ano como presidente, suas metas continuam ousadas. Em seu equivalente ao discurso dos presidentes americanos sobre o Estado da União, em março - algo já inovador por aqui -, ele prometeu criar um sistema universal de saúde e garantiu que os gastos com educação seriam dobrados. Ele também chamou repetidamente a mídia de "quarto estado", afirmando que ela "pode assegurar a liberdade e a responsabilização".
Pelo menos até agora, Thein Sein mostrou um nível adequado de experiência política e geopolítica. Ao suspender as obras de uma controversa represa hidrelétrica chinesa, ele tocou em temores populares em Mianmar, com uma população de 55 milhões de pessoas, de que o país possa ser explorado por seu grande vizinho.
A medida também sugere aos Estados Unidos que renovar os laços com Mianmar pode ser uma vantagem na batalha pelo poder regional com a China.
Mesmo assim, muitos ainda temem que as reformas possam travar, e que fatores demais dependam do presidente. Numa entrevista no ano passado, o redator de discursos presidenciais Nay Win Maung, que faleceu em 1º de janeiro, declarou que não havia motivo para preocupação.
- As mudanças têm sido pontuais - disse ele. - Não existe estratégia, tudo é baseado em personalidade.