Bagdá - Mesmo depois que os esquadrões da morte começaram a matar seus vizinhos, depois que corpos apareceram nas ruas ao redor de sua casa e depois que sua família fugiu amedrontada, Walid al-Bahadli ainda acreditava em seu bairro, o outrora movimentado e diversificado Al Adel.
Muçulmano xiita, ele cresceu ali durante os anos 1960, quando sunitas e xiitas viviam lado a lado em mansões cercadas de palmeiras. Quando ele e sua família se mudaram em busca de segurança, ele jurou que a família iria voltar. E assim foi.
Tal como centenas de milhares de iraquianos que agora estão tentando retornar para as áreas de onde fugiram durante os tempos mais difíceis, a família al-Bahadli descobriu que voltar para casa nunca é tão fácil quanto parece. Ao invés disso, eles se encontram entrincheirados no próximo front do conflito aparentemente interminável do Iraque: a batalha pelo retorno.
Em todo o país, um número quase recorde de famílias está retornando, mas ao invés de fomentar uma reconciliação extremamente necessária, em alguns casos eles estão revivendo os ressentimentos e as desconfianças causadas pelos confrontos sangrentos que transformaram o Iraque em um arquipélago de sunitas, xiitas e curdos, após a invasão liderada pelos Estados Unidos em 2003.
Em lugares como Al Adel, algumas famílias xiitas veem as famílias sunitas que não se manifestaram como cúmplices dos violentos militantes sunitas que atropelaram diversos bairros mistos. Entretanto, diversas famílias sunitas afirmam que agora elas se sentem cercadas pelos xiitas que estão retornando e que, pela primeira vez em séculos, têm o apoio das forças do governo e do exército a seu favor.
Em 2011, o número de pessoas que retornaram ao Iraque foi 120 por cento maior que no ano anterior, chegando a 260.690 pessoas, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Eles foram atraídos de volta pela melhoria na segurança e por maiores pagamentos feitos pelo governo aos iraquianos que registraram seu retorno. Foi o maior número desde 2004, quando a queda de Saddam Hussein abriu as portas para milhares de pessoas que haviam fugido de sua brutalidade, dos deslocamentos forçados e de décadas de sanções esmagadoras.
À medida que continuam a voltar para casa, eles colocam à prova a capacidade iraquiana de superar o prisma do sectarismo, que distorce suas políticas e diminui sua segurança. É uma luta que irá se desenrolar nos próximos anos. Não apenas na política e no governo, mas em bairros machucados e segregados como o Al Adel.
E, caso a história da família al-Bahadli e sua vizinhança sirva como exemplo, o retorno será marcado pela amizade e pelo perdão, mas também pela desconfiança. Ele será um retorno manchado de sangue.
Em árabe, Al Adel significa justiça. Depois da invasão em 2003, o bairro se tornou uma base para os rebeldes sunitas na porção oeste de Bagdá. Eles torturavam pessoas em casas invadidas e lutavam contra milícias sunitas que controlavam um bairro próximo. Praticamente todas as famílias xiitas se mudaram e os moradores estimam que 300 integrantes de 1.500 a 2.000 famílias tenham sido assassinados no bairro.
Atualmente, Al Adel prospera com claros indícios do retorno e da ascensão dos xiitas. Ao longo das ruas principais, tremulam bandeiras pretas, verdes e vermelhas que representam o luto e o martírio dos xiitas. Os rostos barbados de clérigos xiitas, vivos e mortos, observam do alto dos cartazes. Uma nova mesquita para os seguidores do clérigo xiita radical, Muqtada al-Sadr, foi aberta.
Para os muçulmanos xiitas que retornaram durante os últimos anos, essas marcas são sinais de identidade. Mas os sunitas afirmam que entenderam a mensagem: são os religiosos xiitas que agora tomam conta de Al Adel para o governo do primeiro-ministro Nouri al-Maliki.
- Eles nos veem como uma ameaça - afirmou Mohammed al-Ani, um funcionário do governo de 35 anos. - Eles estão nos fazendo passar pelas mesmas coisas que os xiitas sofreram. Agora, como sunita, eu tenho medo quanto estou em casa. Penso o tempo todo que eles virão e me levarão como prisioneiro.
Eles reclamam que estão sendo assediados nos dois postos de controle que levam ao bairro, e afirmam que os soldados acenam para todos os moradores xiitas, mas exigem a identificação dos sunitas. Os moradores sunitas afirmam que, todas as semanas, suas casas são invadidas por soldados leais a al-Maliki.
- Sem qualquer razão - afirmou um morador que pediu para ser identificado pelo apelido de Abu Sama, um sunita que vive em Al Adel desde os anos 1960 e cuja casa foi invadida diversas vezes.
Abu Sama vive ao lado um velho amigo xiita. Eles se referem um ao outro como irmãos. Mas, falando em particular, Abu Sama se agita com o sentimento de exclusão que atualmente abala os redutos sunitas do Iraque, dos vales do rio Diyala aos desertos de Anbar ocidental, passando pelas planícies irrigadas de Salahuddin. Ele enxerga uma conspiração contra os sunitas do bairro nas buscas domiciliares e nas detenções periódicas de dezenas de sunitas após os últimos episódios de terrorismo.
- Me tornei um estranho em meu próprio bairro - afirmou.
Mas as desconfianças têm dois lados.
Dentro do mercado de Al Rabia, compradores de todas as seitas e crenças políticas disputam os mesmos doces de gergelim com mel, as mesmas tâmaras secas e os mesmos pratos de cordeiro assado. O proprietário xiita do mercado, Saad Hamid Majid, tem laços profundos tanto com a comunidade sunita quanto com a comunidade xiita em Al Adel. Mas ele admite que continua cauteloso com os vizinhos que nada fizeram quando ele e outras famílias xiitas foram embora.
Muitas famílias sunitas cuidaram das casas vazias de seus vizinhos xiitas, mas Majid acredita que outras convidaram posseiros e se tornaram os olhos dos militantes sunitas, passando informações sobre seus vizinhos xiitas.
- Nós dissemos aos sunitas que somos irmãos e que podemos viver juntos - afirmou. - Mas eles não estão felizes com nosso retorno. Dá para ver em seus olhos.
Em 2008, após três anos afastados, al-Bahadli e sua família voltaram para casa. Seu lar estava destruído, mas um declínio na violência lhes deu a oportunidade de reconstruí-la. A família comprou novos sofás, móveis para a sala de estar, e novos pássaros para cantar nas gaiolas do quintal.
Al-Bahadli assumiu o cargo de prefeito do bairro, afirmou sua família. Ele reuniu lixeiros, pagou contas de supermercado para as viúvas, mediou inúmeras discussões enquanto bebericava em copos de chá preto. A família reabriu sua sorveteria.
- No começo, nós estávamos cautelosos - afirmou Riyadh, irmão de al-Bahadli. - Adotamos medidas para nos protegermos. Nós todos saíamos juntos. Mas, dia após dia, nós começamos a nos sentir mais seguros.
Mais do que qualquer um, al-Bahadli sentia como se estivesse retomando Al Adel, afirmou sua família.
- Ele sentiu que a vizinhança o protegia - afirmou Alaa, seu irmão. - Como se todos o amassem.
Mas, no dia 17 de janeiro, al-Bahadli estava chegando em casa, vindo da sorveteria com seu neto de dois anos, quando dois homens os confrontaram em frente ao portão de sua casa. Eles sacaram suas armas e dispararam. Al-Bahadli e o neto foram assassinados. Sua filha sobreviveu, ferida por uma bala que lhe atravessou a mão e atingiu o crânio de seu filho. Dois homens sunitas da vizinhança foram presos no tiroteio, mas a polícia iraquiana não os identificou, nem os disponibilizou para uma entrevista. Os membros da família de al-Bahadli acreditam que ele foi assassinado porque era um dos xiitas mais importantes de Al Adel.
- Matá-lo foi uma grande conquista - afirmou seu irmão Riyadh.
Alguns dias após seu funeral, uma multidão de moradores sunitas e xiitas, xeques tribais e líderes comunitários se juntou em frente à porta da família e pediu para que eles não fossem embora. Eles prometeram que iriam cuidar da família.
A família ficou, mas agora eles vivem aterrorizados. A mãe de al-Bahadli chora e implora para que seus outros filhos deixem o bairro novamente. Recentemente, um carro rondou duas vezes o quarteirão e a família suspeitou que esse fosse o prelúdio de um novo ataque.
E uma mortalha caiu sobre grande parte da Al Adel. Moradores sunitas amigáveis choram a morte de al-Bahadli, enquanto temem que isso possa lhes trazer represálias. Mas alguns xiitas, como a jovem mãe Mithaq Sadia, se voltaram para outro conflito sectário.
- Desta vez, nos é que vamos deixá-los amedrontados - afirmou.