Os problemas no sistema anticheias na região central de Porto Alegre, que vieram à tona em maio com a enchente que superou a cheia de 1941, já eram conhecidos há uma década. No final de 2014, um relatório entregue à antiga concessionária do Cais Mauá à prefeitura de Porto Alegre e ao extinto Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) indicou problemas na proteção ao Centro Histórico.
Foram analisados o muro de contenção e sete comportas ao longo do cais do porto. Além de duas casas de bombas na Avenida Mauá — estas últimas, aliás, estão entre as mesmas que tiveram deficiências apontadas pela própria prefeitura em 2018 e 2023, conforme mostrou também o Grupo de Investigação (GDI).
O documento foi produzido pela empresa Simon Engenharia, contratada pela Cais Mauá do Brasil (antiga concessionária do cais) e com supervisão da prefeitura de Porto Alegre e do extinto DEP — que apontaram revisões no documento antes da versão final. O relatório, entretanto, não se reduz à análise detalhada do Muro da Mauá, de sete comportas e de duas casas de bombas. Os engenheiros também deram os caminhos para solução das intercorrências detectadas.
Na análise, é apontada, inclusive, uma estimativa de valores que seriam necessários para consertar cada problema. A quantia citada era de R$ 1,2 milhão (cerca de R$ 2,4 milhões em valores atualizados). O texto avalia que eram "tratamentos relativamente simples e superficiais", que poderiam "preservar e incrementar a integridade dentro de um custo aceitável comparativamente à importância dessas estruturas".
Vedação ruim era maior preocupação
Num olhar geral sobre os papéis, os problemas mais encontrados no muro foram "concreto segregado, armaduras expostas/corroídas e juntas de dilatação degradadas". Já as casas de bombas apresentavam problemas associados "à falta de conservação e vícios construtivos", além de vários equipamentos de drenagem fora de operação. Nas comportas, a situação era mais grave, com falta de motores para operação e vedação inadequada.
"As solicitações para acionamento das comportas não puderem ser atendidas pelo DEP."
TRECHO DO RELATÓRIO
Documento foi produzido em 2014.
Este problema na vedação, inclusive, teve suas consequências expostas na enchente de maio. Enquanto o Guaíba avançava sobre a cidade, o Muro da Mauá lutava para contê-lo. Mas era visível a falha das comportas. Entre frestas nada pequenas escorria o líquido alaranjado e barrento que outrora corria em seu leito natural. Lentamente, o nível "do lado lá" foi se igualando ao "lado de dentro" do Centro.
Menos de um ano depois de o relatório ser entregue, o sistema precisou ser acionado pela primeira vez desde 1986. Em outubro de 2015, o nível do Guaíba atingiu 2m94cm, o maior, até então, desde a enchente de 1941. Mas ainda seis centímetros abaixo da cota de inundação, que era de três metros. Ou seja, a água nem chegou a invadir o Cais Mauá como visto em setembro de 2023 e maio deste ano.
Mas, por segurança, a prefeitura resolveu fechar as comportas. E ficou visível que o sistema não foi operado da maneira como imaginado na sua concepção. Sem motores elétricos e com trilhos entupidos de sujeira, a prefeitura usou retroescavadeiras para arrastar as comportas.
O que diz o relatório
Sobre o Muro da Mauá
- A empresa descreve que "de modo geral, as estruturas descritas (concreto armado do muro) apresentam recobrimento das armaduras insuficientes segundo parâmetros normativos". Para os engenheiros responsáveis pelo documento, os problemas vistoriados ao longo do muro são "vício de execução". Ou seja, já existiam desde a construção do muro.
- Não foi possível vistoriar cerca de 1,5 quilômetro de um lado do Muro da Mauá. Isso devido à "inexistência de passeio público entre a via e os trilhos da Trensurb". Por isso, o relatório indica que, por segurança, "toda a estrutura de concreto (muro) tenha restaurada sua capacidade de proteção" através da aplicação de "uma camada de cobrimento cimentício impermeável, alcalino, cristalizante, semi-flexível e extremamente aderente".
Sobre as comportas do cais
- Foram vistoriadas sete comportas ao longo do Muro da Mauá. Há 10 anos, quando a cidade ainda não imaginava uma enchente próxima de 1941, os autores do relatório dizem que o extinto DEP não conseguiu mostrar como fecharia as comportas caso o Guaíba subisse. "Tendo sido constatada ausência de motores de translação das estruturas, as solicitações para acionamento das comportas não puderam ser atendidas pelo DEP", anotaram os engenheiros.
- Entre as sete comportas vistoriadas, os relatos foram parecidos. Além falta dos motores elétricos que deveriam operar os equipamentos, outras questões frequentes foram: rodas oxidadas e sem lubrificação; trilhos que não permitiram o movimento das comportas; falta das chaves de fim do curso (que limitam os movimentos da comporta até o local correto); parafusos de fixação da vedação não adequados; e pontos de corrosão.
Sobre as casas de bombas 17 e 18
- Concentrado na estrutura ao longo do cais, o relatório aborda ainda a situação nas casas de bombas 17 (na altura da Avenida Padre Tomé) e 18 (na Rua Carlos Chagas). Um dos primeiros alertas do documento é que a prefeitura não apresentou "qualquer projeto ou documentação técnica" relativa aos equipamentos que pudesse ajudar os profissionais a guiar as vistorias.
- Na casa 17, os problemas visualizados eram "típicos de edificações com falta de manutenção". Na época, esta casa tinha quatro bombas de drenagem, mas só uma podia operar. Na casa 18 também foram encontradas vigas com armação exposta. Nesta unidade, eram cinco bombas de drenagem, mas com apenas três operando.
Confira o relatório na íntegra
O que diz o Dmae
Em retorno aos questionamento sobre o relatório produzido em 2014, o Dmae afirmou que no período da emissão do documento, "a atribuição de drenagem era de competência do DEP" e que "o Dmae somente assumiu as atribuições de operação e manutenção do Sistema de Proteção Contra Cheias (SPCC) em maio de 2019". O departamento diz que não foi, "em nenhum momento da transição, comunicado deste relatório, logo não tem como se manifestar sobre o mesmo".
A autarquia informou que, no momento, o Laboratório de Ensaios e Modelos Estruturais (Leme) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com o Dmae, "está efetuando análise das condições do muro, com intuito de identificar eventuais patologias a serem recuperadas pelo departamento".
O que diz José Fortunati, prefeito à época do relatório
Procurado pelo GDI, José Fortunati, ex-prefeito de Porto Alegre, disse ter conhecimento do relatório. Segundo o ex-prefeito, por ser uma área concedida por licitação pelo governo do Estado para uma empresa privada, as medidas apontadas pelo relatório para a recuperação e reforço estrutural do sistema de proteção "deveriam ser implementadas pelos investidores", como contrapartidas pela exploração privada do Cais Mauá.
Em entrevista à Rádio Gaúcha recentemente, Fortunati afirmou ter feito "em 2010 e 2011, profunda reforma do sistema de comportas do muro da Mauá, gastando, na época, R$ 1,7 milhão". Porém, vários problemas apareceram neste relatório de 2014, cerca de quatro anos depois. "Não sei informar se as reformas não resistiram até a produção do relatório, ou se não foram nos mesmos pontos vistoriados no documento", aponta o ex-mandatário da Capital entre 2010 e 2016.
O que diz Nelson Marchezan, prefeito entre 2017 e 2020
Quem também passou pela prefeitura desde a produção do relatório citado nesta reportagem foi Nelson Marchezan Jr. Prefeito da Capital entre 2017 e 2020. O ex-mandatário da Capital afirma que deixou um financiamento (em torno de R$ 10 milhões) para o Plano Diretor (uso e ocupação do solo, plano de saneamento, plano habitacional, entre outros itens) ser atualizado nesse período.
"Em três estudos, estavam precisas as análises de todo o sistema de saneamento básico (resíduos sólidos, água potável, esgoto cloacal, esgoto pluvial e drenagem, diques — inclusive a análise do muro —, etc.)", explica o ex-prefeito, em nota. "Seria o maior plano de estruturação e investimentos da história da cidade, e seria exatamente nas áreas que evitariam (ou mitigariam) essa catástrofe. Foram cancelados", lamenta.
Sobre as casas de bombas, o ex-prefeito alega que quando assumiu a cidade, a situação das casas de bombas não era boa. "Um relatório interno nosso falava em 50% das bombas funcionando. Mas em termos de capacidade de bombeamento era menos de 40%. Ao final entregamos em pleno funcionamento. Muito especialmente após a incorporação ao Dmae", explica Marchezan. O prefeito informa ainda que foi feita uma reforma nas comportas durante seu mandato, com a limpeza do entorno, pintura, lubrificação, raspagem de pontos oxidados e substituição de partes não recuperáveis.
Marchezan aponta que "deixou um contrato assinado com Caixa Econômica Federal (CEF) para "análise, projeto, e investimentos por PPP (parceria-público-privada) em drenagem e diques no valor (à época) de R$ 2 bilhões e 800 milhões. Também foi publicado edital para "concessão de água e esgoto, para universalizar água e esgoto cloacal na cidade", no valor de R$ 2,5 bilhões. Trabalhos que, conforme o ex-prefeito, foram descontinuados por seu sucessor.
O que diz Sebastião Melo, atual prefeito de Porto Alegre
O prefeito Sebastião Melo também foi procurado, mas sua assessoria informou que informações sobre este tema seriam prestadas pelo Dmae.
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