Uma das maiores concentrações de benefícios sociais no Rio Grande do Sul é registrada na cidade de Fontoura Xavier, que tem 10 mil habitantes e fica no alto da serra que leva à região norte do Estado. Uma lista com dezenas de beneficiados circula pela cidade e provocou polêmica: inclui políticos, servidores públicos e microempresários, pessoas que em tese não se enquadram entre os que deveriam ser contemplados. Isso porque esse benefício é destinado a famílias com renda mensal de até R$ 218 por pessoa - ou seja, em situação de miséria.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) teve acesso à lista e foi até Fontoura Xavier. Checou, excluiu algumas suspeitas que não procediam e conversou com cidadãos de classe média que, aparentemente, não se adequam às regras do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome para repasses diversos. Entre eles, o Auxílio Brasil (que no governo Jair Bolsonaro substituiu o antigo Bolsa Família) e o Novo Bolsa Família (recriado pelo governo Lula). Todos têm alguma explicação para o ganho dos benefícios.
É o caso de Olavo Batista Guerreiro, figura conhecida em Fontoura Xavier. Ele foi vereador durante duas décadas, por cinco legislaturas, inclusive presidiu a Câmara Municipal. E foi candidato a vice-prefeito em 2020, não-eleito. Em 2022, Olavinho (como é conhecido na cidade) recebeu R$ 800 do Auxílio Brasil. Em 2023, foi beneficiado com R$ 5,6 mil do Novo Bolsa Família e R$ 800 do Auxílio Brasil e, em 2024, recebeu mais R$ 600 do Novo Bolsa Família.
Questionado pela reportagem, Olavinho justifica que tira benefícios porque não possui rendimentos desde a última derrota eleitoral e recebe auxílios governamentais desde 2022. Ele lamenta que ainda não conseguiu se aposentar e informa que trabalha de motorista para uma funerária. Questionado se isso não configura renda, ele corrige a informação e diz que tinha esse serviço até oito meses atrás (o que o impediria, pelas regras, de tirar o Bolsa Família). O político confirma ter uma SUV Meriva e uma casa em seu nome, embora diga que já vendeu o imóvel (em documentos, a residência ainda consta como sua). Apesar de possuir alguns bens, Olavo acha que tem direito ao benefício.
— Estou sem emprego. Já fui agricultor, arrendei terras para plantio. Minha esperança de voltar a ter renda fixa é me eleger de novo.
Outra que saca benefícios é Cassiana Guerreiro Reichembach, dona do salão de beleza Cassi Studio de Beleza. Conforme o Portal da Transparência da Controladoria-Geral da União (CGU), ela recebeu R$ 2.895 do Auxílio Brasil em 2022, R$ 3 mil do Novo Bolsa Família e R$ 800 do Auxílio Brasil em 2023. E R$ 750 do Novo Bolsa Família, em 2024.
Sobre o fato de ter um salão de beleza e mesmo assim retirar os benefícios (como ela própria admite), Cassiana hesita um instante e depois desliga o telefone. E não atende mais aos chamados da reportagem.
O marido dela confirma que o salão de beleza está funcionando e informa trabalhar como motorista de caminhão, de forma eventual. Inquirido sobre o fato de Cassiana retirar o Bolsa Família, mesmo tendo renda, ele estranha a pergunta.
— Ué, mas não é direito de todo mundo ganhar o Bolsa Família? Nós temos um gurizinho de dois anos — pondera.
A reportagem encontrou outra cabeleireira que recebe o Bolsa Família em Fontoura Xavier. Marivane Romansini tem uma residência com três quartos, dois banheiros e uma garagem, onde ficam os equipamentos para cortar, lavar e secar cabelos, assim como cadeiras para manicure. Ela recebeu, em 2020, R$ 8,2 mil do Auxílio Emergencial e R$ 369 do Bolsa Família. Em 2021, R$ 410 do Bolsa Família, R$ 2.250 do Auxílio Emergencial e R$ 130 do Auxílio Brasil. Em 2022, R$ 2.790 do Auxílio Brasil. Em 2023, R$ 6.350 do Novo Bolsa Família e R$ 800 do Auxílio Brasil. E em 2024, R$ 650 do Novo Bolsa Família em 2024.
Marivane se define como uma "sem renda" e afirma que o salão de beleza está temporariamente desativado, por isso pega benefícios governamentais, há vários anos. Ela diz que é separada, tem filhos e não recebe pensão alimentícia. Admite que faz limpezas e, confrontada se não fatura mais que os R$ 218 per capita da regra do Bolsa Família, Marivane calcula que não.
— Faço bico, faxina. Não sou de mentir. A casa é minha, mas fizemos um acerto, em troca de eu abrir mão da pensão — justifica.
Até a funcionária da prefeitura responsável por montar os cadastros do Novo Bolsa Família em Fontoura Xavier, Maiara Strapasson, consta nos sites do governo federal como recebedora de benefícios sociais. Ela ganhou R$ 6.350 do Novo Bolsa Família e R$ 800 do Auxílio Brasil em 2023 e R$ 650 do Novo Bolsa Família, em 2024, conforme o Portal da Transparência. A servidora não nega, mas diz que já pediu sua própria exclusão do benefício, desde que conseguiu emprego na administração municipal.
Maiara recebe R$ 2,8 mil mensais (conforme o Portal da Transparência), mas relata que começou há pouco tempo no serviço e só vai tirar até esse mês o Novo Bolsa Família. Fala que estava desempregada, com filho pequeno e recebe pensão de R$ 300. O companheiro atual trabalha com pintura e mora com ela.
Questionada se a renda dela e do companheiro, somadas, não ultrapassam o teto de R$ 218 per capita previsto pelo benefício governamental, Maiara diz que ele só consegue trabalhar em dias de sol, o que não acontece sempre.
— Agora sou contratada da prefeitura e vou sair do Novo Bolsa Família. O meu nome ainda consta no site porque estou na regra de proteção, que dura alguns meses, mas vou perder o benefício — ressalta ela.
Maiara se refere a uma chamada "regra de transição" para contemplados pelos programas sociais do governo: quando alguém da família beneficiada consegue um emprego, há tolerância para que o benefício seja concedido por até 36 meses, mesmo que teoricamente já não se enquadre nos R$ 218 per capita. Algo que é visto como uma brecha legal que pode gerar confusões, ressalvam integrantes da Controladoria-Geral da União (CGU) consultados pela reportagem.
Uma em cada duas famílias contempladas com Novo Bolsa Família
Quase 40% das famílias de Fontoura Xavier recebem algum tipo de benefício social do governo federal. É o que mostram os números do Portal da Transparência da CGU. São 39,2% de beneficiados pelo Novo Bolsa Família, por exemplo, conforme levantamento feito pela jornalista Beatriz Coan, com base no Censo de 2022. Tamanha disponibilidade de auxílio financeiro é rara, até porque os programas destinam esse tipo de verba a pessoas carentes.
O Novo Bolsa Família se destina a famílias com renda mensal de até R$ 218 por pessoa - via de regra, que atingem no máximo um salário mínimo de rendimentos. Em 2024, 1.470 famílias foram contempladas com esse benefício em Fontoura Xavier. Como a média é que cada contemplado tem pelo menos dois familiares na mesma casa, isso significa que cerca de 4 mil pessoas foram beneficiadas pelo programa na cidade, que tem 10 mil habitantes.
Em 2023, o alcance do Novo Bolsa Família em Fontoura Xavier foi ainda maior, com 1.530 famílias contempladas. No mesmo ano, outras 1.395 receberam o Auxílio Brasil (em alguns casos, o beneficiado teve direito aos dois programas governamentais). E em 2022, o Auxílio Brasil contemplou 1.590 (o Novo Bolsa Família ainda não tinha sido recriado).
Os quatro primeiros municípios gaúchos que mais recebem Novo Bolsa Família são todos sedes de reservas indígenas, marcados pela baixa renda per capita (veja tabela abaixo). Não é o caso de Fontoura Xavier, que tem menos pobreza que as cidades líderes do ranking.
A secretária de Assistência Social de Fontoura Xavier, Rosicler Dadalt, concorda que causa espanto o fato de quase metade da população receber auxílio governamental, mas justifica: é uma comunidade muito carente. Ela diz que, entre viver de "bicos" (serviços eventuais) e receber benefícios sociais, grande parte da população escolhe a segunda opção.
Rosicler admite que muitos se candidatam aos benefícios sociais, mesmo sem se enquadrarem nos requisitos. A secretária diz que a prefeitura aceita o cadastro conforme declaração do solicitante e que a fiscalização cabe ao governo federal.
— A pessoa passa os dados e incluímos, é declaratório. Nosso trabalho é inscrever e o governo que se encarrega de cortar. No Auxílio Reconstrução, por exemplo, 47 famílias se cadastraram, mesmo com Fontoura Xavier tendo apenas um casal ou dois atingidos pelos alagamentos — ilustra Rosicler.
Professor de Direito alerta sobre estelionato e falsidade ideológica no cadastramento
Professor e advogado especialista em Direito Administrativo, Aloísio Zimmer analisou os casos de pessoas com bens, que recebem Bolsa Família em Fontoura Xavier, mostrados pelo GDI. E pondera: é duvidoso a pessoa ter uma van, custear as despesas com esse veículo, ter imóvel e mesmo assim se considerar apto a receber o Bolsa Família, que contempla apenas quem tem renda per capita de até R$ 218 mensais.
— O banco de dados governamentais centra no emprego ou na renda declarada. E aí, no dia a dia, as pessoas percebem as distorções. É preciso examinar outros dados e existem condições para isso — enfatiza.
Zimmer acredita que os programas governamentais de transferência de renda são fundamentais num país tão desigual - mas acredita que falta fiscalização sobre os beneficiados.
— Muitas pessoas que precisam dos programas como o Novo Bolsa Família não estão no cadastro e muitas estão no programa e não poderiam estar. Isso gera uma perda enorme de recursos num país com limitações orçamentárias.
Zimmer ressalta que o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou, numa auditoria por amostragem em 2023, inconsistências de renda em 40% dos beneficiários do Novo Bolsa Família. Isso pode representar perda de R$ 34 bilhões em um ano, acrescenta.
O professor discorda de quem considera que a fiscalização cabe somente ao governo federal, como opinou a secretária de Assistência Social do município de Fontoura Xavier, Rosicler Dadalt.
— Como o município alimenta o cadastro único, é a prefeitura quem vai à casa das pessoas, que visita as famílias e que atesta que as pessoas são verdadeiras. Aquele que mente para o município pode estar cometendo falsidade ideológica. O que recebe indevidamente pode cometer estelionato. E o servidor público que aceita informações não verídicas também pode ser responsabilizado criminal, civil e administrativamente. Pode ser crime contra a administração pública, com risco de perda do cargo — avisa.
Os benefícios sociais em Fontoura Xavier
Ano Benefício Famílias beneficiadas
- 2024 Novo Bolsa Família 1.470
- 2023 Novo Bolsa Família 1.530
- 2023 Auxílio Brasil 1.395
- 2022 Auxílio Brasil 1.590
Ranking do Novo Bolsa Família no RS
Município Percentual de famílias beneficiadas
1- Benjamim Constant do Sul 81,66%
2 - São Valério do Sul 53,03%
3 - Redentora 52,14%
4 - Charrua 49,84%
15 - Fontoura Xavier 39,25%
Fontes: Portal da Transparência da CGU e Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome
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