Uma nova página foi escrita na história do futebol brasileiro, mas o protagonismo, desta vez, não foi da decisão de título dramática ou do craque que marcou um golaço. O caso é de polícia, com o envolvimento de uma possível "organização criminosa", e o alvo foram ex-dirigentes e empresários que habitaram os gabinetes do estádio Beira-Rio na gestão 2015/2016. Pela primeira vez no país, um clube de futebol profissional — caixas pretas intocadas até então — está sendo devassado por investigações oficiais.
Nesta terça-feira (20), o Ministério Público deflagrou a Operação Rebote, cumprindo 20 mandados de busca e apreensão em residências e empresas na Capital, em Eldorado do Sul e Viamão em investigação que apura os crimes de apropriação indébita, estelionato, organização criminosa, falsidade documental e lavagem de dinheiro na gestão do biênio 2015/2016 do Inter.
Os principais alvos das medidas foram o ex-presidente Vitorio Piffero e os ex-vice-presidentes Pedro Affatato (Finanças), Emídio Ferreira (Patrimônio), Carlos Pellegrini (futebol), Marcelo Castro (jurídico) e Alexandre Limeira (Administração). Também são investigados o escritório Análise Assessoria Contábil, empresários de futebol e outras pessoas ligadas a empreiteiras de fachada.
— A gestão do Inter em 2015 e 2016 foi praticamente uma organização criminosa — afirmou, em entrevista coletiva, o subprocurador do MP para Assuntos Institucionais, Marcelo Dornelles.
Foram apreendidos documentos, computadores e celulares nos locais de busca. Os suspeitos serão chamados para prestar depoimento e o promotor Flávio Duarte, que lidera as investigações no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), não descarta a possibilidade de firmar acordos de delação premiada para avançar mais na elucidação dos delitos.
Em entrevista coletiva contundente, contando com a presença da cúpula do MP, foi assegurado que já existiriam hoje provas suficientes para que os envolvidos fossem denunciados. Mas a intenção é aprofundar.
Até o momento, sabe-se que o Inter foi lesado em pelo menos R$ 10 milhões devido a adiantamentos sacados na tesouraria do clube, muitas vezes em espécie, sobretudo por Affatato. Depois, para dar baixa nos valores retirados, Affatato — que teve sua atuação classificada como "escandalosa" pelo MP — apresentava notas fiscais de empresas desativadas com a alegação de que elas tinham feito obras que, na verdade, não existem.
— Despesas eram criadas com obras e serviços nunca realizadas. Era tudo forjado. Pegavam notas fiscais de empresas inativas — explicou Dornelles.
Uma dessas empresas — são 28 no total — era a Keoma Construção, Incorporação e Planejamento, que emitiu R$ 5,3 milhões em notas ao Inter para justificar saques. O proprietário desta empresa, na série de reportagens publicadas pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) entre março e maio de 2018, afirmou que a Keoma "jamais prestou qualquer serviço ao Inter".
O promotor Duarte informou que 94% de 165 notas fiscais de nove empresas apresentadas no clube no biênio eram de obras fictícias. As outras 6% eram de serviços existentes, mas superfaturados, como a instalação de guard rails em torno do Beira-Rio, executada por uma empresa da família de Affatato.
Há um amplo leque de fontes supostamente ilegais de renda apuradas pelo MP. No jurídico, o ex-dirigente Castro é suspeito de agilizar acordos judiciais com ex-funcionários e ex-atletas no clube, mas com uma condição: parte do valor pago na causa trabalhista teria de retornar à conta de Castro. Limeira teria usado empresas de sua propriedade para atuar como "operador" do esquema, recebendo e repassando recursos. Se no início ocorreram casos em que o dinheiro saía diretamente do Inter para fundos de ex-dirigentes, no decorrer da gestão o sistema se sofisticou e empresas passaram a ser utilizadas em triangulações financeiras.
A investigação ainda tem outra ponta, capaz de abrir um longo novelo no futebol brasileiro. O departamento de futebol, à época comandado por Pellegrini, está sob depuração. A partir de quebras de sigilo bancário, o MP acredita ter identificado que contratações e renovações de jogadores teriam sido superfaturadas para que uma parcela dos valores pudesse voltar à conta de ex-dirigentes como propina. Foram mapeados diversos depósitos de empresários da bola para cartolas colorados.
— Provamos que tem sacanagem no futebol. Vários pagamentos voltaram ao dirigente — afirmou Dornelles.
— Houve combinação entre empresários e dirigentes para lesar o clube. O Inter é vítima — completou Duarte.
Os investigadores ainda avaliaram que o ex-presidente Piffero tinha conhecimento dos fatos criminosos. Existe investigação em curso para verificar se ele também se beneficiou de valores ilícitos.
— Há elementos neste sentido — respondeu Duarte, a respeito de possíveis vantagens pecuniárias ao ex-presidente.
Não há prazo para o término da inédita apuração. E também é desconhecido o rombo total causado ao Inter, jogado à segunda divisão nacional ao término da gestão sob suspeita.