A atuação de uma quadrilha, com pelo menos três dezenas de integrantes espalhados por 10 cidades gaúchas, uma catarinense e uma paranaense, havia transformado o Rio Grande do Sul em um polo de distribuição de carros roubados. Os detalhes da estrutura de funcionamento do bando, desarticulado no final de março pela Operação Macchina Nostra, da Delegacia de Roubos de Veículos (DRV), do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil, foram revelados neste domingo em reportagem do programa Fantástico, da TV Globo.
De acordo com as investigações, o grupo chegava a roubar 150 automóveis por mês na Região Metropolitana. Em um ano e meio, teriam subtraído aproximadamente 1,5 mil veículos e movimentado mais de R$ 6 milhões. Com organização quase que empresarial, os criminosos se dividiam em tarefas específicas, e tinham uma estratégia para o fluxo, desde a abordagem aos motoristas vítimas até a entrega dos carros para receptadores.
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Conversas de WhatsApp mostram negociação de quadrilha
A negociação ocorria por meio de conversas no WhatsApp. Durante a investigação, que durou pouco mais de um ano, os agentes do Deic identificaram pelo menos 10 grupos do aplicativo nos quais carros roubados no RS eram oferecidos para criminosos em uma espécie de leilão virtual. O levantamento aponta que negócios foram fechados com pelo menos nove Estados.
– Transformaram, especialmente Porto Alegre e Região Metropolitana, onde havia a maior incidência de roubo de veículos, em um grande celeiro de fornecimento desse material ilícito – avalia o delegado Sander Cajal, diretor de investigações do Deic.
"Aqui é o Detran, tá ligado?", debocha líder do bando
Com fotos, informações de ano, modelo, potência do motor e tipo de combustível, os carros eram oferecidos, em média, a apenas 10% do valor real de mercado. Alguns negócios, porém, não eram fechados abertamente nos grupos. Bandidos preferiam realizar a compra em PV, como chamam as conversas privadas.
Foi assim com uma caminhonete S-10 roubada na zona norte de Porto Alegre. Vídeo apreendido pela polícia registra o líder da quadrilha, Leonardo Augusto Prestes Cardoso, 32 anos, fazendo a propaganda do veículo para um receptador de Goiás.
– Aí, mano véio. Bem fresquinha pra ti. O bagulho é novo. Não tem uma batida. Nada. Ó, chegou agora. Vamos emplacar, que aqui é o Detran, tu tá ligado? – debocha o homem ao descrever as qualidades da S-10 para o cliente goiano.
Numa concessionária, o modelo custa R$ 143 mil. Na oferta do vídeo, R$ 12 mil. Natural de Rio Verde (GO), Diego Martins Cunha se interessou e entrou em contato com Cardoso. A negociação começou em 19 de novembro e terminou dia 24 daquele mês. No dia seguinte, acertado o valor de compra em R$ 11,5 mil, ele pegou um voo de Goiás para Porto Alegre com a filha bebê e a mulher. A S-10 esperava por ele no estacionamento do aeroporto Salgado Filho. No veículo, Diego tomou o caminho de volta, mas foi abordado pelos policiais na mesma noite, quando parou em um posto de combustíveis, às margens da BR-101, em Osório.
- Um criminoso que rouba um carro na rua, pelo roubo, ganha de R$ 500 a R$ 1 mil. A clonagem custa, em média, de R$ 3 mil a R$ 4 mil, portanto, o custo já é de R$ 5 mil. Por que um criminoso de outro Estado tem interesse de comprar um carro daqui do Sul? É que ele não vai ter o trabalho e o risco de roubar, e os carros daqui já saem prontos. Uma caminhonete que eles compram por R$ 9 mil, R$ 10 mil, no seu Estado de origem vendem por R$ 15 mil, R$ 20 mil. Por isso vale a pena para eles – explica o delegado Marco Antônio Arruda Guns, um dos que comandou as investigações.
O registro da negociata da S-10 foi apenas uma das provas reunidas pela polícia, em um relatório de 492 páginas, para deflagrar a Macchina Nostra no dia 31 de março. Na madrugada daquela sexta-feira, Cardoso foi acordado pelos agentes que cumpriram mandado de prisão contra ele na casa onde morava, em um condomínio em Viamão. Outros 25 integrantes foram presos no mesmo dia no interior do Rio Grande do Sul e também em Blumenau (SC) e Pato Branco (PR).
Além de Cardoso, que coordenava as ações a partir da Região Metropolitana, a associação criminosa tinha uma espécie de coliderança em Caxias do Sul. Lá, o chefe era Márcio Sotel, 29 anos, que ordenava roubos na Serra, mas também encomendava serviços para ladrões na Grande Porto Alegre.
Mais de R$ 1,5 milhão em bens apreendidos da quadrilha
Na última semana, a Justiça autorizou o sequestro de bens e imóveis apreendidos pela polícia com a quadrilha que somam mais de R$ 1,5 milhão. Só em dinheiro vivo, os agentes encontraram nas casas dos presos R$ 40 mil, além de carros, joias e uma moto aquática. A residência do líder da quadrilha, Leonardo Augusto Prestes Cardoso, 32 anos, em um condomínio de Viamão, e uma casa de praia em Tramandaí também foram sequestradas. Sete contas bancárias estão bloqueadas, mas os valores ainda não foram analisados.
Segundo o delegado Adriano Nonnenmacher, um dos responsáveis pela Operação Macchina Nostra, a ação acabou se dividindo em duas: uma para desmontar a quadrilha e outra para levantar os bens comprados com o dinheiro do crime.
– Realizamos planejamento estratégico em paralelo sobre a lavagem de dinheiro. Os líderes e alguns gerentes também vão ser indiciados por esse crime. Nossa ideia era atingir o poder aquisitivo da quadrilha. Tudo que for comprovado que foi comprado com dinheiro dos roubos, vai ser impedido em favor do Estado ou para ressarcimento das vítimas – explica Nonnenmacher.
O diretor de investigações do Deic, delegado Sander Cajal, ressalta a importância de atingir o topo da quadrilha para desbaratar a articulação e a sustentação financeira do bando:
– O Deic tem preocupação de não agir somente contra a ponta, quem está roubando, mas também sobre toda a parte de estruturação, para realmente quebrar a organização.
As quatro principais células
- Peterson Risson Almeida da Silva, 20 anos. Ele encomendava todos os tipos de automóveis, mas principalmente caminhonetes utilitárias e de luxo. Segundo as investigações, o interesse de Peterson era basicamente usar os veículos para desmanche e obtenção de peças. Não tinha antecedentes criminais.
- Márcio Sotel, 29 anos, ordenava roubos na Serra, mas também encomendava serviços para ladrões na Grande Porto Alegre. Em Caxias do Sul, coordenava a clonagem dos automóveis. Tem antecedentes por receptação e adulteração de veículo.
- Gabriela Denise Pfau, 32 anos, conhecida como Daia. Ela recebia carros da quadrilha, auxiliava na localização de veículos para clonar e também distribuía documentos falsos. Tem antecedentes por vários crimes relacionados ao roubo e à clonagem de veículos.
- Leonardo Augusto Prestes Cardoso, 32 anos, líder da quadrilha, operava as negociações com receptadores nos grupos de WhatsApp e dava as ordens para assaltantes na Região Metropolitana, onde também coordenava a clonagem de veículos. Tem antecedentes criminais por receptação, homicídio, adulteração de veículos, associação criminosa, lesão corporal e ameaça.
"A sensação é de impotência", diz vítima
Passados mais de quatro meses do ataque, no qual teve sua caminhonete S-10 roubada em Porto Alegre – e depois negociada pelo líder da quadrilha com um receptador de Goiás –, a proprietária do veículo ainda se diz impressionada com a agilidade dos assaltantes:
– Eram dois indivíduos jovens, bem vestidos, com aparência de classe média e profissionais. Quando fizeram a abordagem, pela rapidez como tudo aconteceu e a exigência de que soltasse tudo, se via que o foco deles era no veículo. O carro provavelmente tinha sido encomendado, estava dentro do perfil – lembra a motorista que, ainda abalada, pede para não ser identificada.
Ela foi abordada com o marido no momento em que embarcavam na caminhonete para sair, em 19 de novembro do ano passado. Estavam estacionados em uma esquina da zona norte da Capital, às 16h, em região movimentada.
– Eles já chegaram dando as instruções. Perguntando da chave para o meu marido e dizendo para deixar a minha bolsa e todas as coisas de valor dentro do carro. Fiquei com uma sensação muito ruim, porque depois não tinha nem chave para entrar na minha casa – conta.
Ao ver a conversa dos criminosos negociando a S-10 pelo WhatsApp, mostrada pela reportagem, ela descreveu o sentimento como revolta:
– É horrível. Um bem que a gente trabalha tanto para adquirir sendo vendido por menos de 10% do valor. A sensação é de impotência.