Dois ícones da literatura gaúcha, os escritores Erico Verissimo e Josué Guimarães são brevemente citados em relatórios da CIA. Josué é mencionado em um "relatório especial", de agosto de 1963, nominado "Tendências políticas, militares e econômicas no Brasil". Era um momento de crescente disputa política e radicalização e, nesse contexto, a CIA narra ações do então presidente Jango para "aumentar seu poder pessoal".
São listadas a aproximação com movimentos de extrema esquerda e tentativas de "minar Carlos Lacerda, o líder anticomunista e governador do Estado de Guanabara (a cidade do Rio de Janeiro)". Josué Guimarães, à época, era diretor da Agência Nacional de Jango e, por isso, foi apontado como uma engrenagem da propaganda governista.
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"Ele (Jango) anunciou uma política de reservar meia hora por semana para discussão no rádio das 'reformas de base' por funcionários de alto nível. Esse programa está sob a supervisão da agência nacional de comunicação do governo, liderada por Josué Guimarães, que não é conhecido por ser comunista, embora tenha contatos frequentes com a embaixada soviética", diz o documento.
O teor do relatório da CIA confronta a tese de que Josué Guimarães, autor de A ferro e fogo e Camilo Mortágua, teria sido agente de espionagem da KGB, o serviço secreto soviético, hipótese que foi publicada recentemente por um periódico português. Na década de 1970, Guimarães chegou a morar em Lisboa, capital portuguesa, onde foi correspondente do jornal Correio do Povo. Para a inteligência americana, ele sequer era comunista, apesar de manter contatos com a embaixada da União Soviética.
– Claro que os soviéticos pegavam informação com o Josué, os jornalistas eram fontes nas quais os diplomatas se baseavam. Mas chamar de espião é uma bobagem – avalia o jornalista Flávio Tavares.
Tavares recorda que, no cargo de diretor da Agência Nacional de Jango, Guimarães era responsável por produções como A voz do Brasil, além da distribuição de notícias e gravação de documentários em vídeo que eram rodados antes das sessões de cinema. Ele ressalta que Guimarães e Erico Verissimo eram "muito amigos" e homens de visão política de esquerda.
Autor de O Tempo e o Vento, O Senhor Embaixador e Incidente em Antares, entre outras obras, Verissimo aparece em um documento batizado "O controle dos intelectuais no Estado comunista". Na introdução, o texto descreve como o governo estendeu seu controle sobre a arte na União Soviética por entender que ela teria papel importante na educação ideológica.
Nesse espírito, no resto do mundo, foi criado o Conselho Mundial da Paz, que promovia congressos com a presença de intelectuais. Havia clara conexão entre os eventos e o governo soviético.
– Naquela época, esses congressos eram como atos contra o imperialismo americano – explica Tavares.
O documento da CIA continha críticas a esses encontros de artistas.
"Os intelectuais da América Latina estão fartos da falsidade do apelo comunista à paz. (...) Os chamados congressos de cultura não são nada além das frentes que Pablo Neruda e Jorge Amado estão tentando promover para fortalecer a estrutura do chamado Movimento pela Paz".
Clique na imagem para ler a íntegra do documento da CIA
No mesmo relatório, o escritor baiano é definido pela inteligência americana como "garoto de recados" dos comunistas. A citação de Erico Verissimo surge no momento em que o relatório se debruça sobre um congresso da paz que estava por acontecer.
"A primeira menção pública do congresso foi feita pelo El Mercurio, jornal conservador de Santiago, em 13 de julho de 1952, que relatou a circulação em vários países latino-americanos de um aviso indicando que um grupo de escritores e artistas teria convocado um 'congresso cultural' em Santiago, Chile, em outubro de 1952. Os organizadores diziam que seu objetivo era 'unir em debates fraternos escritores, cientistas, educadores, figuras do cinema, músicos, profissionais e técnicos com o objetivo de estudar os problemas que surgem da lamentável falta intercâmbio cultural na América Latina'. De acordo com o El Mercurio, o manifesto foi assinado por 16 nomes bem conhecidos, entre eles: Erico Verissimo, Jorge de Lima, Jorge Amado, Luis Carlos Prestes, Leónidas Barletta, Gregorio Bermann, todos classificados como conhecidos militantes comunistas", diz o relatório, baseado em reportagem de diário chileno.
Quem viveu e estudou aqueles tempos de Guerra Fria acredita que Erico Verissimo possa ter assinado uma "adesão" ou carta de apoio ao congresso, mas há dúvidas quanto a sua presença física nos atos.
– Tenho dúvidas. Érico tinha, inegavelmente, visão de esquerda, foi ligado ao velho Partido Socialista Brasileiro. Ele circulava bem com os americanos, era muito respeitado como escritor. Até duvido que ele tenha ido. Ele sabia que ir a um evento desses te carimbava, e ele era cauteloso – avalia Jair Krishcke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos.