Quando a enchente de maio chegou ao Rio Grande do Sul, dinheiro público e privado foi injetado no orçamento dos gaúchos, como adrenalina para reanimar uma economia à beira de um colapso. Ajudas federais, como o Auxílio Reconstrução, e estaduais, como o Volta Por Cima, não estavam previstas. Recursos que entrariam mais tarde foram antecipados, como o 13º do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o das próprias empresas, que pagaram antes o salário extra dos funcionários.
Mas não foi só: para aliviar a pressão no bolso dos gaúchos, bancos ofereceram a suspensão e postergação por até seis meses do pagamento de empréstimos, incluindo consignados (com desconto em folha de pagamento) e até financiamentos imobiliários. Pudera, era preciso repor tudo o que foi levado pela água. Mas esses alívios, agora, cobram um preço:
– Tivemos uma retomada em “V” da economia. Uma queda muito brusca em maio e retomada forte em junho. Porém, não sabemos o quanto esse movimento é sustentável – avalia o economista-chefe da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre (CDL POA), Oscar Frank.
Trocando em miúdos, Frank diz que não há como saber quanto de todo esse dinheiro foi preservado pelos gaúchos para o futuro. Ou seja, para quando fosse necessário voltar a pagar contas pausadas e equilibrá-las com as demais despesas. Inclusive, com aquelas que ainda vão surgir.
– Podemos estar diante de um gargalo nos orçamentos. Isso, em um cenário de juros altos (a taxa Selic está em 10,75% e deve subir ainda mais) para tomar crédito pode levar a uma situação de descontrole – pondera.
Veja o que entrou no orçamento dos gaúchos durante as enchentes
Financeiro
- Auxílio-reconstrução: R$ 5,1 mil
- Volta por Cima: R$ 2,5 mil
- Pix SOS RS: R$ 2 mil
- Saque-calamidade do FGTS: até R$ 6,2 mil
- Duas parcelas adicionais de seguro-desemprego (para quem foi demitido de 1º de dezembro de 2023 a 5 de maio de 2024)
- Adiantamento do abono salarial
- Adiantamento de benefícios previdenciários, como o 13º INSS
- Diversas empresas adiantaram o 13º salário
Postergação de dívidas
- Bancos ofereceram carência de até seis meses para o início de pagamentos de empréstimos ou pausa no pagamento de parcelas pelo mesmo período
- Suspensão por seis meses do pagamento de financiamento imobiliário
*Diversos auxílios foram oferecidos aos atingidos pela enchente. Alguns a todos os afetados, e outros apenas a pessoas com determinadas faixas de renda familiar.
Bola de neve
Para evitar a bola de neve do endividamento – ou, pelo menos, fazê-la parar de crescer –, a dica número um é o já tradicional planejamento. Mas como?
Um bom planejador financeiro dirá que não há uma receita de bolo. Eis aí, talvez, o maior desafio: encontrar o formato e o método que melhor funcionem para cada um. Pode ser o caderninho, um quadro branco na parede, uma planilha de Excel, um aplicativo no celular ou todos eles juntos. O importante é estar confortável e, principalmente, comprometido. É a disciplina, aliás, que vai ser a grande parceira – e, às vezes, algoz – na busca por resultados.
Outro pré-requisito é ser factível, ou seja, não adianta criar algo impossível de fazer. Um diagnóstico da sua situação financeira é o primeiro passo.
– Meu conselho é começar por um raio X. Tudo que entrou e saiu do caixa e quais despesas se tem. Além de projetar o futuro, aquilo que ainda receberá e terá que pagar – afirma o planejador financeiro certificado pela Associação Brasileira de Planejamento Financeiro (Planejar) Stefano Tremea.
Feito o diagnóstico, é hora de elencar prioridades. Mais uma vez, não há fórmula mágica. Como um guia para essa avaliação, Tremea propõe imaginar uma Pirâmide de Maslow – criada na década de 1940 pelo psicólogo norte-americano Abraham Maslow para hierarquizar as necessidades humanas. O que fica na base deve ser atendido primeiro, como contas de aluguel, água, luz, supermercado, educação e saúde. Não podem ser eliminadas, mas podem ser ajustadas por redução de consumo.
No topo da pirâmide, vem aquilo que está ligado às realizações pessoais, como lazer, no qual entram passeios, restaurantes, assinaturas de streamings de música e filmes, apostas, presentes e até as férias que começam a ser planejadas nessa época. São os chamados supérfluos, que, segundo a planejadora financeira certificada pela Planejar Leticia Camargo, podem ser cortados:
– Muitas vezes, temos desperdícios, como vários streamings aos quais não assistimos e mantemos por conveniência. É o que primeiro devemos cortar.
Gasto racional
Fixadas as prioridades, tanto Letícia quanto Tremea concordam que é hora de planejar de fato e de mãos dadas com a realidade – nada de metas inalcançáveis. É o orçamento que deve se adaptar à renda, e não o contrário.
– Temos que aceitar o padrão de renda atual e fazer gastos racionais. Uso a analogia da água. Quando sabemos que vai faltar por três dias, juntamos uma reserva e vamos gastando com cuidado. Com o dinheiro, é igual – diz Letícia.
A parcimônia também é defendida por Tremea, que discorda de que a virada de ano seja sinônimo de aumento das despesas.
– Se vai acabar se endividando por causa de um final de ano, precisa rever isso. Pode ser uma boa oportunidade de repensar sua própria ideia de educação financeira – defende.
Outra convergência de ambos é a reserva de emergência, que deve corresponder ao custo de vida por um período médio de seis meses.
– Um trabalhador de carteira assinada pode ter menos, mas um autônomo deve ter seis meses ou mais. Esse dinheiro deve estar em um investimento extremamente conservador, como um título de renda fixa como o CDB, que renda pelo menos 100% do CDI, ou no Tesouro Selic – alerta Tremea.
Construir a reserva quando as finanças estão estranguladas pode não ser possível, mas deve ser prioridade para quando a turbulência acalmar.
– Uma estratégia é ter uma aplicação automática, porque o dinheiro entra e já será destinado. Se deixar para o final do mês, pode não sobra nada – sugere Letícia.
Fique atento: indicadores que influenciam no orçamento
- IPCA SETEMBRO: 0,44%
- IPCA 12 MESES: 4,42%
Atenção à conta de luz e aos alimentos, que estão mais caros. O IPCA também é usado para reajustar contratos, como financiamento da casa própria.
Fonte: IBGE
- CESTA BÁSICA DE PORTO ALEGRE: R$ 756,17 (setembro)
Batata, banana, arroz e café são as maiores altas do último ano no conjunto de alimentos. Nem todos são fáceis de substituir. O alívio vem da carne, que segue caindo de preço.
Fonte: Dieese
- ALUGUEL:
Novo (imóveis anunciados para alugar): +25,5% em 12 meses, segundo o Índice FipeZap de Porto Alegre, puxado por bairros que não alagaram.
Em andamento (reajuste de contratos): Índice mais usado, o IGP-M acumula +4,53% em 12 meses.
A dificuldade para financiar a compra de imóveis provocará alta maior do aluguel.
Fonte: FGV
- INADIMPLÊNCIA: 39,08% da população adulta do RS. Indicador se aproxima do recorde. Taxa de juro Selic em alta deixa as dívidas atrasadas ainda mais caras.
Fonte: Serasa Experian
Apertando os cintos
A reserva financeira é algo que a enfermeira Luciane Mota, 38 anos, espera poder reconstruir em breve. Moradora do Sarandi, em Porto Alegre, ela ficou 122 dias fora da sua casa, que foi destruída pela enchente. Voltou há pouco mais de um mês.
Naquele período, colecionou despesas imprevistas. Da compra de roupas, perdidas na água, à reforma da casa, que teve piso, portas e janelas danificados.
– Tinha acabado de pedir demissão, mas estava organizada, só que tive que que gastar tudo. As doações não supriam, meu gasto de deslocamento aumentou porque me abriguei em outra cidade – relembra.
Luciane recebeu os R$ 5,1 mil do Auxílio Reconstrução e uma doação da igreja que frequenta, mas não teve direito a outros benefícios porque conseguiu um emprego logo depois. Não tinha empréstimos e não precisou pausar o pagamento de nenhuma parcela, o que, aliás, sempre evita.
– Apliquei o dinheiro na reforma e compras para dentro de casa. Tentei pagar tudo à vista. O que não deu, parcelei, mas em poucas vezes – diz.
A enfermeira já tinha essa estratégia de compras, se define como uma pessoa que “controla bem” o dinheiro, essencial para se equilibrar no atual momento e pensar o futuro.
Toda a família – o marido, as duas filhas e a mãe de Luciane – vão apertar os cintos pelos próximos meses. Os planos de trocar de carro ficarão para mais tarde. Os presentes darão lugar a lembranças nas datas comemorativas, que terão festas mais modestas. As viagens periódicas para ver a família em Alegrete, na Fronteira Oeste, serão reduzidas. A ida à praia nas férias de verão foi para a berlinda. Um esforço de curto prazo para um efeito de longo prazo:
– Não está sobrando muito dinheiro, mas não estou endividada. Quando recebo, pago tudo o que tenho que pagar. Do que sobra, guardo uma parte e o resto é para o mês – explica.
Luciane é a dona da chave do cofre em casa. Em detrimento dos caderninhos e das planilhas, é adepta do “sou organizada no meio da minha bagunça”. Pode não ser a estratégia recomendada pelos profissionais – e pelo marido – mas é a que funciona:
– Meu marido acha que eu deveria ter tudo na ponta do lápis. Já tentei, mas acabo me perdendo. Funciono bem tendo tudo na cabeça, dá certo.