Assim como era admirado pelos gaúchos, o cartunista Ziraldo costumava dizer que adorava o Rio Grande do Sul — particularmente a principal feira literária organizada em solo pampeano. O desenhista e escritor, morto enquanto dormia na tarde deste sábado, em sua casa na zona sul do Rio, era um frequentador assíduo da Feira do Livro de Porto Alegre, e aproveitava as passagens pela Capital para encontrar amigos e colegas de cartum em bares como o Tutti Giorni, localizado nos altos do Viaduto da Borges de Medeiros.
Ali, costumava reunir artistas gaúchos que o admiravam, como Moacir Knorr Gutterres (o Moa), Santiago e Edgar Vasques tanto pelas qualidades de escritor quanto pelo talento como artista.
— O Ziraldo vinha de uma geração muito forte, que tinha também Millôr, Henfil. Além de representar essa reação ao governo militar da época, ele se destacava como artista plástico, tinha um carinho muito grande pelo desenho e valorizava a parte artística do trabalho como cartunista, que é geralmente um humorista que desenha, mas tem foco principal no conteúdo, o que é legal também. Mas ele era um grande artista e dominava diferentes estilos — opina Moa.
O cartunista gaúcho lembra ainda que Ziraldo serviu como referência para gerações seguintes de cartunistas e desenhistas pela capacidade de liderança e pelo engajamento em causas como o combate à ditadura. Um dos exemplos dessas características era sua atuação no Pasquim, jornal que satirizava o regime repressor.
— Um jornal como o Pasquim seria importante hoje, imagina naquela época. Eles faziam do medo o material para produzir humor por meio do sarcasmo — complementa Moa.
Passagens pela Feira do Livro
Se nos bares Ziraldo confraternizava com seus colegas de traço, na Feira do Livro da Capital o cartunista encontrava seu público e desfilava entre outra de suas paixões — os livros. Entre as árvores da Praça da Alfândega, há alguns anos, o cartunista gaúcho Rafael Corrêa conseguiu um autógrafo de seu ídolo.
— O Ziraldo sempre foi referência para quadrinistas do Brasil, na literatura infantil também. Éramos bombardeados por quadrinhos americanos ou europeus, e ele trouxe personagens bem brasileiros. Na literatura infantil, influenciou a minha criação do Artur, o arteiro — diz Corrêa, em referência ao personagem do quadrinho publicado em Zero Hora.
Na 62ª edição do evento, em 2016, o artista reuniu adultos e crianças para autografar na Praça da Alfândega seu livro lançado naquele ano, Meninas.
— Eu sou frequentador da Feira, às vezes falho um ano, mas sempre venho. Sempre adorei a Feira e a forma como ela envolve a cidade inteira. Considero essa a melhor feira do livro do Brasil, e deveria ser copiada no país inteiro — disse Ziraldo, à época, em uma entrevista à equipe da Livraria Espaço Cultural, assegurando que pretendia continuar visitando o Estado enquanto tivesse "força física".
Em conversa com GZH naquele mesmo ano, mostrou-se um admirador dos escritores e do ambiente cultural dos gaúchos:
— O Rio Grande do Sul deve ser o Estado do Brasil com mais escritor por quilômetro quadrado, é impressionante. Eles vivem de escrever no RS, poucos chegam lá em cima, mas aqui são respeitadíssimos. Toda vez que chego aqui e tenho essa receptividade e carinho, eu me sinto um estranho no ninho. Tenho vontade de dizer a esses escritores: "Rapazes, vocês me desculpem, eu não tenho culpa nenhuma, entendeu (risos)?".
Comoção em livraria da Capital
A quadrinista, cartunista e artista visual Fabiane Langona estava em uma livraria da Capital com outros artistas no final da tarde do sábado e conta que houve uma "comoção" no local quando chegou a notícia da morte de Ziraldo pela importância de sua figura para o país.
Ziraldo era um dínamo criativo
GILMAR FRAGA
Ilustrador e chargista
— É um personagem basal nas artes gráficas brasileiras, e não só nas artes gráficas, mas também em termos de humor, quadrinhos, literatura. Sempre foi um gigante. Para além do Menino Maluquinho, do Flicts, da Turma do Pererê, desses clássicos da literatura, a atuação dele no período do Pasquim, a luta na imprensa alternativa brasileira frente ao golpe militar de 1964, foi parte fundamental da nossa história — avalia Fabiane.
Para o ilustrador, chargista e caricaturista Gilmar Fraga, que atua em Zero Hora, Ziraldo era um artista múltiplo:
— Era um dínamo criativo. Trabalhou com a publicidade e o design, criou personagens inesquecíveis como a turma do Pererê, e foi um chargista potente que, com uma geração de talentos como Millôr, Jaguar e Fortuna, peitou a ditadura com o Pasquim e nas charges para os jornalões. Junto a isso, que não é pouco, os quadrinhos pra playboy, uma galeria de personagens (Jeremias, o Bom, a Supermãe e o Mirinho), os livros infantis como Flicts, O Menino Maluquinho e tantos outros projetos. Era daqueles desenhistas cuja timidez passou a léguas de distância. Expansivo, verborrágico, forte e seguro como seu traço.