Por Adão Villaverde
Professor de Gestão do Conhecimento e da Inovação na Escola Politécnica da PUCRS e Engenheiro Conselheiro do CREA-RS
No final de agosto, participei na Câmara Federal, na Comissão de Direitos Humanos, de seminário realizado pela instituição em parceria com a Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Kiss, com o objetivo de denunciar e reafirmar que a sociedade não deve esquecer, para que isso nunca mais aconteça, além de exigir as devidas responsabilizações pela gravidade e dramaticidade de tudo que ocorreu.
Passaram-se 10 anos e meio desta inesquecível e lamentável desumanidade, que ceifou 242 prodigiosas vidas e deixou 636 feridas, além de violentar famílias, traumatizar comunidade e repercutir de forma muito triste mundialmente. O incêndio da boate Kiss, ocorrido em 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, é um atestado cruel do individualismo particularista, do descaso muitas vezes de nossa sociedade e, fundamentalmente, de seus órgãos públicos na produção de políticas de prevenção, fiscalização e controle.
Simboliza também, o egoísmo coletivo, escondido na emoção inicial conjunta do primeiro momento de ardor, vertido em caudalosas lágrimas, mas que se esvaíram, como a fumaça do próprio e inaceitável sinistro, apagando-se processualmente com passar do tempo. Não me refiro apenas à impunidade que impera até hoje, que já é gravíssima e inadmissível, soando como um deboche institucional à dor dos sobreviventes e dos familiares das vítimas. E nem ao manto de esquecimento que vestiram muitos veículos de comunicação, que cobriram as decorrências do episódio, depois da efervescência emotiva inaugural que o horror inusitado da mortalidade ampliada despertou nos seus ouvintes, leitores e telespectadores. Para depois, o assunto ir amainando e perdendo espaços, à semelhança de alguns outonos em nossas vidas, quando as folhas voam e vagam como que sem destinos, deixando apenas tristes e melancólicas lembranças.
Também não me refiro apenas à própria inaceitável descaracterização posterior da legislação de segurança e prevenção contra incêndios, elaborada em Comissão Especial do Parlamento gaúcho, que tive a tarefa e a responsabilidade de presidir ainda em 2013. Que, infelizmente, era resultado desse sentimento e tentava amenizar ao menos um pouco as más rememorações, para mitigar o compartilhamento da culpa de todos, pela conivência com a omissão com que se tratou e se trata o caso até hoje.
Lei esta que, apesar de ter sido aprovada à época por unanimidade na Assembleia Legislativa do RS e sancionada pelo governador Tarso Genro, enfrentou na sequência o surgimento de alguns movimentos não explícitos de inconformidade com a nova e moderna legislação. Que me levaram algumas vezes à tribuna do Legislativo, acentuando, repetida e recorrentemente – mas em vão –, sobre os graves riscos da “flexibilização” da chamada Lei Kiss. Que acabou tendo o seu rigor original abatido por um conjunto de emendas, sobretudo a partir de pressões de alguns setores, que, propondo excepcionalidades, legitimaram o conhecido “jeitinho brasileiro”. Aliás, tão condenado na insuficiente e temerária legislação anterior, mas infelizmente agora consignado no novo regramento, evidenciado estritamente pela defesa de interesses econômicos e outros setoriais particularistas, sendo alguns inclusive até mesmo inconfessáveis.
Acabou-se destruindo a lei que era tecnicamente fundamentada e criteriosa; rigorosa do ponto de vista de licenciamentos e fiscalizações; muito transparente nas competências e responsabilidades; justa nas exigências, cobranças e sanções e, fundamentalmente, exequível do ponto de vista de sua implementação, evitando os extremos: fosse a leniência, fosse o proibicionismo.
Ainda que exemplos possam ser reducionistas, vale referir alguns inconsistentes tecnicamente, realizados para alguns tipos de edificações: 1) o da facilitação da emissão de alvarás de três em três anos e fiscalizações e inspeções de cinco em cinco anos, para situações com potencial de significativos riscos de incêndios; 2) a possibilidade de até 750 metros quadrados de área e três pavimentos não necessitar mais de Plano de Prevenção Completo, só Simplificado, e ainda com dispensa de vistorias para emissão de alvarás; 3) por fim, tramita no Legislativo gaúcho hoje um Projeto de Lei que confere a possibilidade de profissionais não habilitados assinarem o Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI). E há seguramente tantas outras flexibilizações já realizadas que poderiam ser arroladas aqui.
De tudo isso, fica até hoje a dúvida que nos atormenta diuturnamente: se o que importa mesmo é a preservação de vidas humanas, uma vez que a lei não foi só “flexibilizada”, mas vilipendiada e quase extinta em relação à sua forma original. Ou se na verdade, as vidas valem menos do que alguns metros quadrados de construções, que se revertem muitas vezes em tributos arrecadatórios, em resultados e lucros imobiliários, ou mesmo em ganhos de apenas alguns, em detrimento do conjunto de nossa comunidade.