Foi ouvindo música clássica que Ivo Abrahão Nesralla comandou uma equipe de cerca de 20 pessoas no primeiro transplante de coração feito no Rio Grande do Sul. O cirurgião cardiovascular — que faleceu nesta quarta-feira (16), aos 82 anos — tinha a trilha sonora como hábito nas cirurgias no Instituto de Cardiologia, e naquele 2 de junho de 1984 não foi diferente.
Como atesta o doutor Renato Kalil, Nesralla aparentava tranquilidade. A operação durou entre quatro e cinco horas.
— Estávamos todos admirados da coragem do doutor Nesralla, e também da coragem do paciente, de se submeter a uma primeira cirurgia deste porte — acrescenta o cirurgião, que compunha a equipe.
E foi assim que o médico gaúcho retomou esse tipo de cirurgia no Brasil. Tinham sido realizados apenas três transplantes de coração no país até então, em São Paulo, mais de 10 anos antes. Houve uma pausa no procedimento em razão de problemas da rejeição do órgão.
Com a descoberta de uma droga, chamada cyclosporina, para combater a rejeição, Nesralla estava entusiasmado para aplicar as técnicas que aprendera na Universidade de Stanford, na Califórnia, com o pioneiro dos transplantes, o doutor Norman Schumway.
Longe ainda de haver o Sistema Nacional de Transplantes, era a equipe do Instituto de Cardiologia que precisava correr atrás de um doador. O cirurgião cardiovascular Paulo Prates, hoje com 80 anos, lembra que o próprio Nesralla conversou com a família de um jovem de 22 anos que teve diagnosticada a morte cerebral após um acidente de moto. Foi um dos momentos mais estressantes, relata, mas a família acabou autorizando a doação do coração.
O receptor era um paciente de 49 anos, que sofria de cardiopatia isquêmica. Naquela época, morria um paciente por mês no Instituto de Cardiologia, que poderia ser salvo com transplante. Como contou o próprio Nesralla para a reportagem de ZH, era o último recurso para manter o receptor vivo e o risco era muito alto.
Quando terminamos a operação e demos um choque no coração e ele voltou a bater, foi uma emoção para todos
PAULO PRATES
Cirurgião cardiovascular
— Quando terminamos a operação e demos um choque no coração e ele voltou a bater, foi uma emoção para todos. Imagine só ver o coração de outra pessoa batendo no peito de alguém que estava praticamente morto — descreve Prates.
O paciente sobreviveu por poucos dias. O transplante foi feito na sexta-feira e, na segunda, ele acabaria falecendo, principalmente, por problemas renais.
Mas naquele dia começou uma nova era de transplantes no Brasil. O serviço de cirurgia que foi por ele dirigido no Instituto de Cardiologia contabiliza hoje mais de 200 transplantes cardíacos.
— Esse renome que o RS tem em relação à cirurgia cardíaca vem dele — destaca Prates.