Pesquisadores do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) utilizaram um vírus modificado para tratar uma doença rara em um menino de dois anos. É a primeira vez que o procedimento é feito fora dos Estados Unidos, onde outros cinco pacientes já foram tratados.
A criança tem mucopolissacaridose tipo II, ou síndrome de Hunter, uma doença genética que interfere na capacidade do organismo em quebrar e reciclar determinadas substâncias conhecidas como glicosaminoglicanos. Essas substâncias se acumulam nas células de todo o corpo pela deficiência ou ausência de uma enzima (idoronato-2-sulfatase), o que causa comprometimentos nos ossos e articulações, nas vias respiratórias e nos sistemas cardiovascular e neurológico, entre outros.
O menino que recebeu terapia gênica tem, por exemplo, o fígado e o baço aumentados, problemas nas articulações e déficit cognitivo. Ele já perdeu um irmão com a mesma doença. No procedimento, feito sob anestesia geral, ele recebeu uma injeção no crânio, diretamente no líquido que banha o cérebro, de um vírus modificado. Esse vírus teve seus genes trocados por outros genes humanos, com a função de substituir no paciente aquele gene que não funciona e, dessa forma, fazer com que a enzima necessária seja produzida.
Segundo o geneticista Roberto Giugliani, professor titular de genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e responsável pelo procedimento, é provável que a terapia não reverta os comprometimentos já existentes no sistema nervoso, mas que interrompa o processo de declínio mental e os outros sintomas.
— Será muito importante que, no futuro, a gente consiga identificar esses pacientes mais cedo, no nascimento. São doenças progressivas, que podem ser detectadas no teste do pezinho.
Giugliani explica que o vírus modificado não causa nenhum problema, é usado apenas para transportar o gene humano para o cérebro do paciente.
— Ele tem um tropismo que vai para a célula certa, ou seja, levamos esse gene até a célula do sistema nervoso que vai fabricar a proteína que está faltando.
Os primeiros estudos experimentais sobre o procedimento começaram em 2001, a partir da criação de um centro de terapia gênica no HCPA. Ao menos 40 pesquisadores se dedicam ao projeto.
— Os resultados em camundongos foram muito positivos. Temos seguimento de mais de 10 anos O tratamento diminui o acúmulo das substâncias (que causam os danos) e vimos benefícios na parte neurológica. Também se mostrou seguro — afirma.
Outras alternativas para o menino seriam transplante de medula óssea, sem eficácia comprovada e com alto risco de mortalidade, ou terapia de reposição enzimática, com infusões semanais pelo resto da vida. A vantagem da terapia gênica, segundo o médico, é a possibilidade de corrigir o defeito genético com apenas um procedimento, para sempre.
Em 2014, a equipe de Porto Alegre fez uma parceria com um grupo norte-americano para o desenvolvimento de estudos multicêntricos sobre a terapia gênica. Os primeiros pacientes com mucopolissacaridose foram tratados nos Estados Unidos no final de 2019 e somente no próximo mês é que devem sair os primeiros resultados.
— Essa é uma área que vai crescer muito nos próximos anos, com potencial de tratar várias outras doenças — diz o geneticista.
A terapia pioneira teve autorização do comitê de ética do HCPA, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).